Doutor Fausto de Thomas Mann - O Homem e o Tempo do Homem
Quem é Fausto todo mundo sabe: o homem que vendeu a alma ao diabo. A imagem que dele fazemos é a de um homem cuja ambição não vê limites. Os primeiros adjetivos que nos vêem à mente têm sempre uma conotação negativa, pois seu nome está associado ao do “coisa ruim”. Ambicioso, inconsequente, vaidoso. Mais um mito que é via de regra assimilado ao pé da letra. Thomas Mann apresenta uma bela abordagem do Fausto, mas que mostram exatamente porque se trata de um mito, e não de uma lenda ou estória da carochinha.
Em O Doutor Fausto, Thomas Mann apresenta um homem, o músico Adrian Leverkühn, que faz um pacto com o diabo para viver o suficiente para realizar sua grande obra. Para quê? Por vaidade? Para se tornar “imortal”?
O Fausto que nos é apresentado não tem nada de vaidoso ou egotista. Ele é um misantropo exemplar, que resiste a se tornar músico, a princípio, justamente por ser avesso a apresentações públicas, aplausos e louros, como escreve a seu mestre, Kretzschmar, em longa carta no capítulo 15. Adrian Leverkühn não faz o pacto por vaidade, mas por angústia. Ele abre mão de sua individualidade para criar uma obra que revolucionaria os conceitos da música, que proporcionaria à Arte o inevitável rompimento com as velhas formas. Esta justificativa está neste mesmo capítulo, quando o narrador, Zeitblom, comenta a resposta do mestre a esta mesma carta:
“A frieza, a inteligência rapidamente saciada, a percepção do insípido, a lassidão, a propensão para o tédio, a facilidade de enojar-se - tudo isso contribuía para elevar o inerente talento ao nível de uma vocação. Por quê? Porque só em parte pertencia à personalidade privada, mas em outra parte tinha caráter supra-individual e expressava o sentimento coletivo do desgaste histórico e do esgotamento dos recursos artísticos, do aborrecimento causado por eles e do desejo de encontrar caminhos novos. “A Arte progride” – escreve Kretzschmar – “e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros. Devido à necessidade vital que a Arte tem do progresso revolucionário e da realização do renovamento, depende ela do veículo do mais intenso sentimento subjetivo, que acha chochos, inexpressivos e obsoletos os recursos ainda corriqueiros e se serve daquilo que aparentemente não é vital, a saber, da predisposição pessoal para a lassitude, do fastio intelectual, do asco que acomete a quem perceba o segredo do feitio, da maldita inclinação de ver as coisas à luz de sua própria paródia, do senso do cômico. O desejo de vida e progresso, inerente à Arte, põe as máscaras dessas indolentes qualidades pessoais, para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se.”
O que angustia Leverkühn, e o faz ansiar por esta obra renovadora, é “o sentimento coletivo do desgaste histórico e do esgotamento dos recursos artísticos”, “o aborrecimento causado por eles” e o “desejo de encontrar caminhos novos”. Estes são os anseios que o levam a querer realizar a grande composição a qualquer preço. É “o desejo de vida e progresso, inerente à Arte” que “põe as máscaras dessas indolentes qualidades pessoais, para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se”. Ou seja, esse impulso que se sente “por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis” não pertence só ao indivíduo, ou melhor, o indivíduo se dissolve neste contexto, pois ele é apenas um instrumento através do qual esta força se expressa. Assim, o tédio do esgotamento da cultura se comunica através do indivíduo e prepara o terreno para o diabo.
Antes disso, no capítulo 8, em que Zeitblom narra as palestras de Kretzschmar, Leverkühn já entra em contato com idéias a respeito do envolvimento do sujeito-artista com o objeto de arte que cria, da necessidade do desprendimento do ego na realização de uma obra de arte. A palestra em questão trata da música de Beethoven. Diz o mestre:
“(...) uma exaustão, um abandono do ego, que por sua vez produziam um efeito mais tremendamente majestoso do que qualquer ousadia pessoal. (...) Onde se uniam a grandeza e a convenção, que, quanto à sua majestade, deixava longe o mais despótico subjetivismo, porque nela, o meramente pessoal, que já era em si a superação de uma tradição levada ao extremo, crescia mais uma vez acima de si próprio, ao adentrar-se, grandiosa e fantasmagoricamente, nos domínios do mítico e do coletivo.”
O adjetivo atribuído ao substantivo “subjetivismo” é “despótico”. O subjetivismo é apontado como o controle absoluto das vontades do ego. Segundo Kretzschmar, o subjetivismo limitou, até certo ponto, a música de Beethoven. O “meramente pessoal” precisa superar-se para alcançar “os domínios do mítico e do coletivo”. Kretzschmar dá o exemplo da evolução da obra de Beethoven, acompanhada pela trajetória de anulação dos caprichos do ego, e, assim, ensina a Leverkühn a necessidade desta superação.
Em A Montanha Mágica, escrita depois do fim da Primeira Guerra Mundial, Mann já coloca aquela inquietação, aquele tédio, aquela insipidez e fastio intelectual, que incomoda os espíritos inquietos:
Em A Montanha Mágica, escrita depois do fim da Primeira Guerra Mundial, Mann já coloca aquela inquietação, aquele tédio, aquela insipidez e fastio intelectual, que incomoda os espíritos inquietos:
"O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais de sua existência, e que da idéia de criticá-las permaneça tão distante quanto o nosso Hans Castorp – até uma pessoa assim pode sentir seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz conscientemente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e todo esforço - então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta "Para quê?", é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico, ou então uma vitalidade muito robusta.”
Neste trecho, o autor ressalta que o indivíduo é, indiscutivelmente, reflexo de seu meio. A luta contra a estagnação do meio, do tempo em que se vive, é a mesma luta de Leverkühn contra a estagnação da Arte. Hans Castorp, protagonista de A Montanha Mágica não é nenhum empreendedor, não é um espírito criador, ele é, segundo o próprio narrador, “medíocre”. Com certeza, Castorp não seria o autor desta “obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades”, ele não tem nada de independente, ou de heróico e nem tem “uma vitalidade muito robusta”. Que obra é esta? Em A Montanha Mágica, não se fala mais nessa grande obra realizada por este espírito livre e independente.
Mann pode estar falando da sua própria obra, que é fruto de duas Guerras Mundiais, desgostos e exílios, da obra de qualquer artista que se sinta inquieto com o tédio do mundo, ou, quem sabe, da obra de Leverkühn/Schönberg, que só seria criada décadas depois, e que espelha a obra de outro angustiado, Friedrich Nietzsche. Não importa. Ele está falando do esforço criativo que enfrenta a estagnação do contexto. O spleen não é propriedade do Romantismo. O tempo sempre carece de esperanças e perspectivas. Qual é, então, o sentido supremo de toda atividade e esforço? “Para quê?” Para quê realizar uma obra grandiosa?
Depois de uma Segunda Guerra Mundial, a resposta ecoa em Doutor Fausto. “Para quê” Leverkühn faz um pacto com o diabo? Para mover o tempo. Criar uma obra formalmente revolucionária proporciona a sensação de evolução, de progresso. A Montanha Mágica é um romance sobre o tempo, sobre a ação do tempo sobre o homem e as coisas. O Doutor Fausto é um romance sobre a ação do homem sobre o tempo. Em A Montanha Mágica, Hans Castorp não tem saída, está preso no tempo em que vive, ele é medíocre e passivo, e sua jornada para se tornar um indivíduo é interrompida pela guerra. Em Doutor Fausto, Adrian Leverkühn busca uma saída, uma forma de escapar, de interromper o marasmo, de fazer o tempo correr. Leverkühn tem a independência e o isolamento moral necessários para criar a grande obra. Ele é livre daquele “subjetivismo despótico”. O que ele não tem é “a vitalidade muito robusta”. Para isso, ele precisa do diabo, que lhe oferece, em troca de sua alma, TEMPO. E um tempo otimizado, expandido, um tempo produtivo. O diabo permite que ele viva o suficiente e ainda articula um ardil para que a energia criadora de seu protegido não seja escoada através de uma vida sexual ativa.
Em A Gênese do Doutor Fausto, ao final do terceiro capítulo, Mann conta que, ao revelar a um amigo suas pretensões a respeito de seu romance sobre o Fausto...
“Talvez o que mais o tenha impressionado tenha sido o pacto com o diabo como escapatória das dificuldades da crise da cultura, a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade.”
É assim que escapa o espírito ameaçado, buscando uma força fora de si, vendendo sua alma, ou seja, abdicando da única coisa que tem de individual, para dar à Arte o progresso pelo qual ela urge. Leverkühn não faz o pacto ansiando por glória e satisfação pessoal. O pacto vem contribuir para desafogar o tédio de uma época que se reflete num indivíduo, mas que não pertence só a ele.
Belíssima, também, é a face do Fausto revelada por Goethe. Mas esta é uma outra história, e deve ser contada em outra ocasião.
2 Comments:
hahahahahahaha!!
enfim rendeu-se :)
bem interessante seu texto, bem estruturado e erudito.
vc sabe que não conheço mann à fundo, mas a idéia de pactos demoniacos, me trazem frequentemente a impressão da abdicação de um futuro pelo fim do tédio presente. nosso eterno conflito prazer versus segurança, sendo a segurança parte do tédio, tanto presente quanto vindouro.
quanto a entregar a alma em troca de uma obra, me parece não só uma tradição como quase dever no ocidente...
beijos ansiosos por mais conversas.
Olá, gostei muito de seus comenrários sobre tema, mas só queria dar uma sugestão - se ñ estiver sendo inconveniente - seria aconselhável que vc mudace a cor do plano de fundo do seu site, pois ela, sendo preta com letra branca, torna demasiado cansativa a leitura.
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