terça-feira, abril 25, 2006

Doutor Fausto de Thomas Mann - O Homem e o Tempo do Homem


Quem é Fausto todo mundo sabe: o homem que vendeu a alma ao diabo. A imagem que dele fazemos é a de um homem cuja ambição não vê limites. Os primeiros adjetivos que nos vêem à mente têm sempre uma conotação negativa, pois seu nome está associado ao do “coisa ruim”. Ambicioso, inconsequente, vaidoso. Mais um mito que é via de regra assimilado ao pé da letra. Thomas Mann apresenta uma bela abordagem do Fausto, mas que mostram exatamente porque se trata de um mito, e não de uma lenda ou estória da carochinha.
Em O Doutor Fausto, Thomas Mann apresenta um homem, o músico Adrian Leverkühn, que faz um pacto com o diabo para viver o suficiente para realizar sua grande obra. Para quê? Por vaidade? Para se tornar “imortal”?
O Fausto que nos é apresentado não tem nada de vaidoso ou egotista. Ele é um misantropo exemplar, que resiste a se tornar músico, a princípio, justamente por ser avesso a apresentações públicas, aplausos e louros, como escreve a seu mestre, Kretzschmar, em longa carta no capítulo 15. Adrian Leverkühn não faz o pacto por vaidade, mas por angústia. Ele abre mão de sua individualidade para criar uma obra que revolucionaria os conceitos da música, que proporcionaria à Arte o inevitável rompimento com as velhas formas. Esta justificativa está neste mesmo capítulo, quando o narrador, Zeitblom, comenta a resposta do mestre a esta mesma carta:
“A frieza, a inteligência rapidamente saciada, a percepção do insípido, a lassidão, a propensão para o tédio, a facilidade de enojar-se - tudo isso contribuía para elevar o inerente talento ao nível de uma vocação. Por quê? Porque só em parte pertencia à personalidade privada, mas em outra parte tinha caráter supra-individual e expressava o sentimento coletivo do desgaste histórico e do esgotamento dos recursos artísticos, do aborrecimento causado por eles e do desejo de encontrar caminhos novos. “A Arte progride” – escreve Kretzschmar – “e o faz por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis, assumindo uns a forma de outros. Devido à necessidade vital que a Arte tem do progresso revolucionário e da realização do renovamento, depende ela do veículo do mais intenso sentimento subjetivo, que acha chochos, inexpressivos e obsoletos os recursos ainda corriqueiros e se serve daquilo que aparentemente não é vital, a saber, da predisposição pessoal para a lassitude, do fastio intelectual, do asco que acomete a quem perceba o segredo do feitio, da maldita inclinação de ver as coisas à luz de sua própria paródia, do senso do cômico. O desejo de vida e progresso, inerente à Arte, põe as máscaras dessas indolentes qualidades pessoais, para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se.”
O que angustia Leverkühn, e o faz ansiar por esta obra renovadora, é “o sentimento coletivo do desgaste histórico e do esgotamento dos recursos artísticos”, “o aborrecimento causado por eles” e o “desejo de encontrar caminhos novos”. Estes são os anseios que o levam a querer realizar a grande composição a qualquer preço. É “o desejo de vida e progresso, inerente à Arte” que “põe as máscaras dessas indolentes qualidades pessoais, para assim manifestar-se, objetivar-se, cumprir-se”. Ou seja, esse impulso que se sente “por intermédio da personalidade, que é produto e instrumento da época, e na qual fatores objetivos e subjetivos ligam-se até tornarem-se indistinguíveis” não pertence só ao indivíduo, ou melhor, o indivíduo se dissolve neste contexto, pois ele é apenas um instrumento através do qual esta força se expressa. Assim, o tédio do esgotamento da cultura se comunica através do indivíduo e prepara o terreno para o diabo.

Antes disso, no capítulo 8, em que Zeitblom narra as palestras de Kretzschmar, Leverkühn já entra em contato com idéias a respeito do envolvimento do sujeito-artista com o objeto de arte que cria, da necessidade do desprendimento do ego na realização de uma obra de arte. A palestra em questão trata da música de Beethoven. Diz o mestre:
“(...) uma exaustão, um abandono do ego, que por sua vez produziam um efeito mais tremendamente majestoso do que qualquer ousadia pessoal. (...) Onde se uniam a grandeza e a convenção, que, quanto à sua majestade, deixava longe o mais despótico subjetivismo, porque nela, o meramente pessoal, que já era em si a superação de uma tradição levada ao extremo, crescia mais uma vez acima de si próprio, ao adentrar-se, grandiosa e fantasmagoricamente, nos domínios do mítico e do coletivo.”
O adjetivo atribuído ao substantivo “subjetivismo” é “despótico”. O subjetivismo é apontado como o controle absoluto das vontades do ego. Segundo Kretzschmar, o subjetivismo limitou, até certo ponto, a música de Beethoven. O “meramente pessoal” precisa superar-se para alcançar “os domínios do mítico e do coletivo”. Kretzschmar dá o exemplo da evolução da obra de Beethoven, acompanhada pela trajetória de anulação dos caprichos do ego, e, assim, ensina a Leverkühn a necessidade desta superação.
Em A Montanha Mágica, escrita depois do fim da Primeira Guerra Mundial, Mann já coloca aquela inquietação, aquele tédio, aquela insipidez e fastio intelectual, que incomoda os espíritos inquietos:
"O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais de sua existência, e que da idéia de criticá-las permaneça tão distante quanto o nosso Hans Castorp – até uma pessoa assim pode sentir seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz conscientemente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e todo esforço - então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta "Para quê?", é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico, ou então uma vitalidade muito robusta.”

Neste trecho, o autor ressalta que o indivíduo é, indiscutivelmente, reflexo de seu meio. A luta contra a estagnação do meio, do tempo em que se vive, é a mesma luta de Leverkühn contra a estagnação da Arte. Hans Castorp, protagonista de A Montanha Mágica não é nenhum empreendedor, não é um espírito criador, ele é, segundo o próprio narrador, “medíocre”. Com certeza, Castorp não seria o autor desta “obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades”, ele não tem nada de independente, ou de heróico e nem tem “uma vitalidade muito robusta”. Que obra é esta? Em A Montanha Mágica, não se fala mais nessa grande obra realizada por este espírito livre e independente.
Mann pode estar falando da sua própria obra, que é fruto de duas Guerras Mundiais, desgostos e exílios, da obra de qualquer artista que se sinta inquieto com o tédio do mundo, ou, quem sabe, da obra de Leverkühn/Schönberg, que só seria criada décadas depois, e que espelha a obra de outro angustiado, Friedrich Nietzsche. Não importa. Ele está falando do esforço criativo que enfrenta a estagnação do contexto. O spleen não é propriedade do Romantismo. O tempo sempre carece de esperanças e perspectivas. Qual é, então, o sentido supremo de toda atividade e esforço? “Para quê?” Para quê realizar uma obra grandiosa?
Depois de uma Segunda Guerra Mundial, a resposta ecoa em Doutor Fausto. “Para quê” Leverkühn faz um pacto com o diabo? Para mover o tempo. Criar uma obra formalmente revolucionária proporciona a sensação de evolução, de progresso. A Montanha Mágica é um romance sobre o tempo, sobre a ação do tempo sobre o homem e as coisas. O Doutor Fausto é um romance sobre a ação do homem sobre o tempo. Em A Montanha Mágica, Hans Castorp não tem saída, está preso no tempo em que vive, ele é medíocre e passivo, e sua jornada para se tornar um indivíduo é interrompida pela guerra. Em Doutor Fausto, Adrian Leverkühn busca uma saída, uma forma de escapar, de interromper o marasmo, de fazer o tempo correr. Leverkühn tem a independência e o isolamento moral necessários para criar a grande obra. Ele é livre daquele “subjetivismo despótico”. O que ele não tem é “a vitalidade muito robusta”. Para isso, ele precisa do diabo, que lhe oferece, em troca de sua alma, TEMPO. E um tempo otimizado, expandido, um tempo produtivo. O diabo permite que ele viva o suficiente e ainda articula um ardil para que a energia criadora de seu protegido não seja escoada através de uma vida sexual ativa.
Em A Gênese do Doutor Fausto, ao final do terceiro capítulo, Mann conta que, ao revelar a um amigo suas pretensões a respeito de seu romance sobre o Fausto...
“Talvez o que mais o tenha impressionado tenha sido o pacto com o diabo como escapatória das dificuldades da crise da cultura, a ânsia por eclosão, a qualquer custo, de um espírito orgulhoso e ameaçado de esterilidade.”
É assim que escapa o espírito ameaçado, buscando uma força fora de si, vendendo sua alma, ou seja, abdicando da única coisa que tem de individual, para dar à Arte o progresso pelo qual ela urge. Leverkühn não faz o pacto ansiando por glória e satisfação pessoal. O pacto vem contribuir para desafogar o tédio de uma época que se reflete num indivíduo, mas que não pertence só a ele.
Belíssima, também, é a face do Fausto revelada por Goethe. Mas esta é uma outra história, e deve ser contada em outra ocasião.

2 Comments:

Blogger tangerinas incendiárias said...

hahahahahahaha!!

enfim rendeu-se :)

bem interessante seu texto, bem estruturado e erudito.

vc sabe que não conheço mann à fundo, mas a idéia de pactos demoniacos, me trazem frequentemente a impressão da abdicação de um futuro pelo fim do tédio presente. nosso eterno conflito prazer versus segurança, sendo a segurança parte do tédio, tanto presente quanto vindouro.
quanto a entregar a alma em troca de uma obra, me parece não só uma tradição como quase dever no ocidente...

beijos ansiosos por mais conversas.

terça-feira, abril 25, 2006  
Blogger Cuia Robert said...

Olá, gostei muito de seus comenrários sobre tema, mas só queria dar uma sugestão - se ñ estiver sendo inconveniente - seria aconselhável que vc mudace a cor do plano de fundo do seu site, pois ela, sendo preta com letra branca, torna demasiado cansativa a leitura.

domingo, novembro 20, 2011  

Postar um comentário

<< Home