quarta-feira, abril 26, 2006

José e seus irmãos de Thomas Mann - E agora, José? E esses silêncios infernais?

(Para o Robertão, meu Professor de História da escola, de quem ouvi pela primeira vez a história de José e seus irmãos.)
Descida ao poço da minha admiração sem fim. Difícil falar de José, mas o prolongado silêncio está fazendo muito barulho. Desista enquanto há tempo. Este texto é inútil. Esta escrita de mim não tem nada a oferecer. É a escrita de um pedinte, que mostra as mãos vazias e pergunta: você me entende?

Segunda chance para desistir... (Eu chego a citar um parágrafo inteiro...)

Então vamos lá. Deixe a razão aqui na beirada. Lá embaixo, vamos falar de coisas do coração. Três, dois, um.

Careta. Um livro careta: com início, meio e fim, com passado, presente e um futuro congelado na resolução de uma trama homérica. Ou melhor, bíblica. Quase sagrada de tão redonda – não fosse aquele prólogo maldito. Dizem que é pouco lido o José e Seus Irmãos do Thomas Mann. Pessoas dizem que não têm fôlego pra ler um livro tão extenso. Mentira. É o medo do prólogo. Ele está lá, esperando a sua próxima vítima, sussurrando “isto não é um livro, é uma bigorna oscilando sobre a sua cabeça”. Você entra numa biblioteca – elas existem e abrigam livros do Thomas Mann – ou numa livraria cabeça, e folheia o iniciozinho do primeiro livro. Começa assim: “Descida ao Inferno”.
A) você fecha o livro e sai correndo.
B) como diria aquele com o bigode, se você olha pro abismo, o abismo olha pra você.

Se chegamos até aqui, é porque optamos pela letra B, de abismo. O abismo olha através de você, e se impõe como um espelho inevitável. Você ousa se debruçar sobre o precipício. E, então, nítida e brilhante, a fonte de Narciso. O reflexo é difuso e misterioso e aí está a sua beleza: você não pode mais se levantar. É tarde demais. É preciso ceder ao chamado da aventura e mergulhar nesta fonte, que além de fonte é um abismo, e neste abismo que além de abismo é um espelho.

O narrador diz, do Homem, quando de sua criação, que “baixando os olhos, percebeu sua alma espelhada na matéria, enamorou-se dela, desceu até ela e assim caiu na servidão da natureza inferior”. É algo parecido o que acontece com o leitor apaixonado e a literatura de Mann: não se separam mais e para sempre se confundem ao tentar entender quem é mais verdadeiro.

O prólogo é uma obra à parte: discursa sobre o tempo, a escrita, o dilúvio, a torre, o paraíso, a criação do homem, o anjo caído, a inquietação espiritual – tudo isso antes mesmo de iniciar as histórias de Jacó. Mas veja bem: isso não quer dizer que ele possa ser consumido à parte. Porque ele tem garras. Garras curvas e um canto sedutor. O prólogo do José é uma Esfinge, que não vai dar ouvidos à sua resposta até que você ultrapasse o fim do quarto livro. Mas ninguém tem pressa. O autor não tem pressa, e já põe as cartas na mesa no primeiro livro: se Jacó esperou 7 anos pra se casar com Raquel, 4 livros não causarão aborrecimento.

"Uma espera, e nada mais, é uma tortura. Ninguém aguentaria ficar sentado sete anos ou sete dias, ou andar para baixo e para cima e esperar, como se pode aguentar talvez durante uma hora. Isto não pode dar-se nas unidades maiores de tempo, porque a espera se alonga e se esgarça, ficando mais densamente ocupada com o mero viver, de forma que durante longos períodos ela se torna vítima do puro esquecimento, isto é, se recolhe às profundezas da alma e já não está conscientemente presente. Assim uma meia hora de pura e simples espera é mais temível e uma prova mais cruel para a paciência do que uma espera que se estende por sete anos de vida. O que esperamos para daí a pouco nos afeta precisamente por causa da sua proximidade, como um estímulo muito mais penetrante e mais imediato do que se estivesse afastado; transforma a nossa paciência em impaciência arrasadora dos nervos e dos músculos, torna-nos mórbidos; não sabemos mesmo que fazer com os nossos membros; ao passo que uma espera de longo prazo nos deixa em paz; ela não somente permite, mas nos força a pensar em outras coisas e a fazer outras coisas, porque temos de viver. Tal é a origem desta surpreendente verdade: seja qual for o grau de ânsia com que esperamos, não o fazemos com mais dificuldade, porém mais facilmente, quanto mais distante no tempo ficar o alvo de nossas esperanças."

E assim vemos nosso antigo Eu se escoar pela ampulheta da desconstrução. (Não se trata de uma desconstrução formal, mas sim de uma desconstrução de gosto, ou uma incisiva confirmação de gosto.) O tempo de José caminha a passos largos e firmes. Meses. Anos. Décadas. Eras. Do lado de cá da página, as horas. As horas se devoram aos borbotões, reinvindicando sua vontade de ser minuto. Perto do fim, as palavras se consomem como os últimos grãos de areia que se precipitam por aquela implacável garganta de vidro. Do lado de cá, a gente implora “Ainda não!”, e, ao mesmo tempo, devora com fascinação. No entanto, o fim chega certo como a morte. Um suspiro sem ar e o silêncio do excesso de significado. “E assim termina a linda história inventada por Deus de José e Seus Irmãos”. Inventada por Deus! Quanta ironia nestas palavras. Calo-me diante de tamanha espirituosidade.

Soterrada pela fina areia de Mann (leve e rara como “a túnica de várias cores” que Jacó dá a José), a língua morta dentro da boca, vejo a esfinge voando em silêncio em torno do meu eixo. Seu canto já articulou a última nota. O feitiço se completa. Pronto. A resposta sou eu. O meu objetivo sou eu: o meu gosto, o meu ajuizamento. Eu sou José; inventado por Deus, arrematado pelo Diabo e contado pelo Homem; o escolhido; o preferido; o Bastian Balthazar Bux que mergulhou na História Sem Fim e salvou Fantasia; aquele homem de pé torto para o qual a esfinge propôs seu enigma; “o filho enfermiço da vida”, aquele ser para o qual Thomas Mann escreveu o José, e Shakespeare escreveu o Hamlet. Porque o resto, Pedro Bó, é silêncio. E o que ecoa neste silêncio é a presença momentaneamente esquecida do Eu. Quando uma platéia inteira se cala segundos antes de aplaudir em uníssono, quando uma dezena de desconhecidos não se levanta da cadeira no cinema nem depois dos créditos e depois fingem que ainda não se conhecem, é aí que está o poder aterrador do silêncio. O silêncio do Eu que admira tanto, que se sente só.

Seja o branco sobre branco (iluminado pela beleza ofuscante da celebração da linguagem), ou o preto sobre preto (do assombro estonteante provocado pelo silêncio), este silêncio de fundo de poço sem fim, “que vem dos dias de Set”, desemboca no inferno da inquietação espiritual. A tábula rasa, o grau zero do indivíduo profundamente calado que nada mais sabe de si, que mudou de fase, que venceu algum dragão ou minotauro, mas que agora se vê diante de um novo deserto, cujas regras ele simplesmente desconhece.

E o que o indivíduo faz depois que se depara com algo assim que o cala, que faz com que ele se ache pequeno e fútil, como um homenzinho estarrecido diante de um vulcão em erupção? Ou ele morre, ou começa outra vez. Melhor: ele morre. E começa outra vez. Como Hans Castorp na neve da Montanha Mágica: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos. E com isso vou acordar... Pois segui o meu sonho até o fim. Alcancei meu objetivo”. Os 4 livros de José e Seus Irmãos são como o sonho de Hans Castorp, lá em cima, na neve: um divisor de águas feito de revelação, transmutação e beleza.

...

Mas que livro ler depois de José e Seus Irmãos? Qualquer um, na verdade. Outros sonhos virão, com seus brados, seus ruídos e seus silêncios. Não importa. Um céu de estrelas continua bonito depois de uma chuva de meteoros.

Mas que chova meteoro de vez em quando, por favor.

# # #

Bonus track, para ser lida fora do contexto mesmo e interpretada as you like it:

“Ele sofria; e quando comparava a extensão de sua angústia com a da grande maioria, tirava a conclusão de que ela estava prenhe de futuro. Não serão inúteis – foi o que ele ouviu do Deus que acabara de contemplar – tua angústia e tua inquietação; hão de gerar muitas almas e fazer prosélitos tão numerosos quanto as areias dos mares; darão impulso a grandes expansões de vida, nelas contidas como uma semente; resumindo, tu serás uma bênção. Uma bênção?”

6 Comments:

Blogger tangerinas incendiárias said...

e esse silêncio extasiado, algo pacífico de sorriso de canto de boca, algo salivante, algo sorrateiramente curioso.

bençãos são tão dubias quanto maldições depois que viramos a primeira página...

quinta-feira, abril 27, 2006  
Blogger J. said...

Estou me sentindo como no seu primeiro parágrafo...de mãos vazias. Você escreve muito bem e tem muito a oferecer, sim. É uma delícia a relação que estabelece com a obra, dá vontade de ler e passar por todo esse percurso que você descreve.
bjs
Ju

quarta-feira, maio 03, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Vou ler Thomas Mann... e quero ler Daniele Ávila, mais e mais. Salve todas as bênçãos! Fonte, abismo, espelho, palavras, jornadas, esperas, encontros, visões, esperas... esperas... esperas...
Quero fundar um blog!

terça-feira, agosto 08, 2006  
Blogger Daniele Avila said...

Salve! Salve! Meu Mefisto!
Obrigada e volte sempre!

terça-feira, agosto 08, 2006  
Blogger Pobres & Nojentas said...

Foi um dos livros que mais amei. E por amá-lo tanto descobri e li outras obras citadas por Mann. Muito delicada a tua impressão da obra.

Míriam

segunda-feira, fevereiro 02, 2009  
Anonymous Anônimo said...

Li esse livro a cinco anos atrás! Leitura deslumbrante, que faz alegrar e emocionar! Quem se encarregar de ler essa longa jornada, prepare-se e leia cada palavra dessa obra como se fosse a última, porque é uma obra inesquecível!E a segunda leitura nunca será a mesma!

sexta-feira, setembro 28, 2012  

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