Conversation piece
Violência e Paixão. Péssimo título, se comparado com o original. Não o aceito. Vou chamar o filme de Conversation piece e pronto. Existe uma tradução oficial para o gênero conversation piece? Nunca sei essas coisas. De qualquer forma, compartilho com o Visconti sua homenagem a Burt Lancaster, e se ele filmou em inglês e deu ao filme este título inglês, mantenho.
É estranho que se tenha dado este nome ao gênero, na verdade. No fundo, se existe uma coisa que estes conversation pieces não captam, esta coisa é a conversa. Conversation pieces são retratos do silêncio. Dos pequenos silêncios talvez, os que parecem inofensivos, os que precedem perguntas irrelevantes. Registros silenciosos de uma intimidade familiar. No filme, paredes cheias destas telas quietas desenham um reduto da intimidade particular, uma intimidade quase inviolável, sendo 'quase' uma ameaça declarada, a palavra do início. "Temas mais íntimos", dizem. Mas acho que querem dizer "temas mais íntimos que outros". Eu penso "os temas mais íntimos". A intimidade fica protegida na tela, preservada na imobilidade do momento. O Professor é um colecionador de intimidades, um colecionador de momentos.
São realmente impressionantes os seus gestos. Ele não lava um copo, mas limpa o sangue da escadaria. Ele serve a menina, pedindo licença por usar os dedos. Com a mesma seriedade, ele cuida dos quadros. Reparo como os avalia, como maneja a lupa, como carrega o jovem agredido, limpa-o e coloca cuidadosamente o cobertor sobre seus ombros. Sua delicadeza ao carregá-lo ferido é parente da sua força ao carregá-lo morto. Seus gestos de passividade são igualmente expressivos: seu desinteresse ao se deixar beijar, seu jeito de abrir os braços em um gesto de impotência diante da vida, de reter o ar e deixar as mãos estendidas ao se despedir de Lietta no final. A sua atitude ao escutar é um gesto cheio de poder, pois esconde uma capacidade muito serena de proteger seu silêncio. Mas não é abrindo mão de falar que ele expressa seu silêncio, é no jeito mesmo de escutar, com seu filtro de paz e beleza que o interesse pela vida vai rompendo delicadamente ao longo do filme, sem se perder completamente.
Visconti pinta o silêncio em Conversation piece, quando dialoga com a pintura; e pinta o silêncio em Morte em Veneza quando dialoga com a música. Em um, há o amor que se impele para o objeto; no outro há o amor que se enjaula no sujeito. Dois silêncios: um silêncio metálico e frio, de amor que bate no espelho e volta, espatifado; e um silêncio cálido e macio, de amor que se cultiva introspecto, e se enraíza no escuro. Também não acho que este seja um filme político. Acho que a política é só mais um barulho. Não é ela quem desperta o Professor do seu sono contemplativo. Talvez porque o outro da política seja abstrato demais, coletivo demais. O outro, para o Professor, tem rosto, roupas, parece vivo, e merece ser examinado com sua lupa: não basta estar perto e emoldurado, é preciso ampliá-lo.
E o garoto Konrad, este Tadziu crescido e rebelde que vem com o bafo da morte, é um detalhe de um conversation piece que ainda não tinha sido pintado. Ele é o negativo do silêncio, seu adversário à altura. Ele, como o outro, vem como um sopro de vida para tornar a morte mais barulhenta do que sua dignidade demanda. Este é o Narciso do amor permitido, que desperta a paternidade, faz o homem olhar para sua fonte de juventude. O jovem acorda no Professor o seu interesse por se comunicar, como diante de um espelho mágico. Se não fosse por sua presença, ele mal se daria ao trabalho de interagir com tanta generosidade para com os demais. Ele escuta o que Konrad diz porque desde o primeiro momento percebe certa afinidade com suas referências. Ambos estão interessados numa interferência mútua. Mas Konrad sempre endurece a conversa, porque suas tintas são densas – estão próximas demais da matéria prima. Pelo menos são tintas, deve pensar o Professor. Depois do longo descanso, eles conversam abertamente: Konrad diz que viu a si mesmo conversando com o Professor, pedindo-lhe conselhos. Como um amigo imaginário (é o que eu penso), como um exemplo para o exercício da sua comunicabilidade. Konrad é cheio de vida, o Professor é cheio de morte. Eles se adotam. Parece que é o Professor que vai adotar uma vida, mas é na morte que Konrad se antecipa, assinando o bilhete com as pesadas palavras: "seu filho, Konrad". E assim renasce por um segundo daqueles, que só se prolongam no espaço e tempo internos. Porque só renasce quando morre. Naturalmente. Em busca do tempo perdido.
É estranho que se tenha dado este nome ao gênero, na verdade. No fundo, se existe uma coisa que estes conversation pieces não captam, esta coisa é a conversa. Conversation pieces são retratos do silêncio. Dos pequenos silêncios talvez, os que parecem inofensivos, os que precedem perguntas irrelevantes. Registros silenciosos de uma intimidade familiar. No filme, paredes cheias destas telas quietas desenham um reduto da intimidade particular, uma intimidade quase inviolável, sendo 'quase' uma ameaça declarada, a palavra do início. "Temas mais íntimos", dizem. Mas acho que querem dizer "temas mais íntimos que outros". Eu penso "os temas mais íntimos". A intimidade fica protegida na tela, preservada na imobilidade do momento. O Professor é um colecionador de intimidades, um colecionador de momentos.
São realmente impressionantes os seus gestos. Ele não lava um copo, mas limpa o sangue da escadaria. Ele serve a menina, pedindo licença por usar os dedos. Com a mesma seriedade, ele cuida dos quadros. Reparo como os avalia, como maneja a lupa, como carrega o jovem agredido, limpa-o e coloca cuidadosamente o cobertor sobre seus ombros. Sua delicadeza ao carregá-lo ferido é parente da sua força ao carregá-lo morto. Seus gestos de passividade são igualmente expressivos: seu desinteresse ao se deixar beijar, seu jeito de abrir os braços em um gesto de impotência diante da vida, de reter o ar e deixar as mãos estendidas ao se despedir de Lietta no final. A sua atitude ao escutar é um gesto cheio de poder, pois esconde uma capacidade muito serena de proteger seu silêncio. Mas não é abrindo mão de falar que ele expressa seu silêncio, é no jeito mesmo de escutar, com seu filtro de paz e beleza que o interesse pela vida vai rompendo delicadamente ao longo do filme, sem se perder completamente.
Visconti pinta o silêncio em Conversation piece, quando dialoga com a pintura; e pinta o silêncio em Morte em Veneza quando dialoga com a música. Em um, há o amor que se impele para o objeto; no outro há o amor que se enjaula no sujeito. Dois silêncios: um silêncio metálico e frio, de amor que bate no espelho e volta, espatifado; e um silêncio cálido e macio, de amor que se cultiva introspecto, e se enraíza no escuro. Também não acho que este seja um filme político. Acho que a política é só mais um barulho. Não é ela quem desperta o Professor do seu sono contemplativo. Talvez porque o outro da política seja abstrato demais, coletivo demais. O outro, para o Professor, tem rosto, roupas, parece vivo, e merece ser examinado com sua lupa: não basta estar perto e emoldurado, é preciso ampliá-lo.
E o garoto Konrad, este Tadziu crescido e rebelde que vem com o bafo da morte, é um detalhe de um conversation piece que ainda não tinha sido pintado. Ele é o negativo do silêncio, seu adversário à altura. Ele, como o outro, vem como um sopro de vida para tornar a morte mais barulhenta do que sua dignidade demanda. Este é o Narciso do amor permitido, que desperta a paternidade, faz o homem olhar para sua fonte de juventude. O jovem acorda no Professor o seu interesse por se comunicar, como diante de um espelho mágico. Se não fosse por sua presença, ele mal se daria ao trabalho de interagir com tanta generosidade para com os demais. Ele escuta o que Konrad diz porque desde o primeiro momento percebe certa afinidade com suas referências. Ambos estão interessados numa interferência mútua. Mas Konrad sempre endurece a conversa, porque suas tintas são densas – estão próximas demais da matéria prima. Pelo menos são tintas, deve pensar o Professor. Depois do longo descanso, eles conversam abertamente: Konrad diz que viu a si mesmo conversando com o Professor, pedindo-lhe conselhos. Como um amigo imaginário (é o que eu penso), como um exemplo para o exercício da sua comunicabilidade. Konrad é cheio de vida, o Professor é cheio de morte. Eles se adotam. Parece que é o Professor que vai adotar uma vida, mas é na morte que Konrad se antecipa, assinando o bilhete com as pesadas palavras: "seu filho, Konrad". E assim renasce por um segundo daqueles, que só se prolongam no espaço e tempo internos. Porque só renasce quando morre. Naturalmente. Em busca do tempo perdido.
Konrad é um destes exemplos de que não é preciso estar no tempo do fim da vida para se sentir em outro mundo, nem para viver de acordo com outros valores. Talvez seja preciso mesmo é estar no começo. Mas nem isso é suficiente. Porque quem é fora de seu tempo estará sempre fora do seu lugar também. O desencaixe é incondicional. O misfit é atemporal e nisto está a sua liberdade. Sua linguagem é o silêncio. Por isso o Professor se isola naquele templo de referências. É como se para ele só a pintura fosse capaz de abraçar o silêncio. Naquele cenário, há um tempo redescoberto em cada quadro. Como em cada filme do Visconti.
Daniele Avila, 29 de janeiro de 2007