quarta-feira, maio 17, 2006

Montaigne - O despertar da intratável realidade

(Para a pequena Mariana Maltoni e sua pungente Fotografia)
“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém as escuta, é preciso recomeçar sempre.[i]

Mas não é só isso. Não é que ninguém escute, pois tem sempre alguém que escuta e deste alguém que sempre escuta falaremos daqui a pouco. Gide fala das “coisas ditas” e isto me remete, inevitavelmente, ao “dizer as coisas”. E quando diz “é preciso”, acaba dizendo “eu preciso”. Nesta frase do Gide, que entrou aqui sem pedir licença, eu sempre leio: “Eu preciso dizer coisas que já foram ditas, não importa para quem, sempre”. Então vamos falar do ensaio (e do ensaísta). Para falar do ensaísta, escolhemos Montaigne (sujeito que é o nosso objeto) pois, pelo menos no caso dele, não é possível separar a obra do autor: ele e seu livro são uma coisa em comum. Assim, perguntamos: O que é o ensaio? O que é o ensaísta? O que o ensaio tem de particular e relevante?

O ensaio é uma espécie de auto-retrato falante, que flagra o instante da experiência de um punctum, dentro de uma moldura fantasma. Fantasma, eu digo, porque tem gente que vê, tem gente que não vê, e mesmo quem vê não vê necessariamente no mesmo lugar e nem da mesma forma. E não há juiz que decida de quem é o ponto. Como uma forma sem fórmula, as características do ensaio dançam entre si e assumem suas formas de acordo com o foco e o enquadramento do ensaísta. E o brilho do ensaio está nesta sensualidade de suas fronteiras, no livre jogo de seus limites, quando se avizinha e ao mesmo tempo se afasta de outras formas. Sobre a moldura do ensaio, encontro uma expressão de Roland Barthes (ele se referia a uma fotografia especial): “A resistência apaixonada a qualquer sistema redutor.”
[ii]

A escrita de si nunca é só de si, e sim de si diante de alguma coisa, alguma coisa que funciona como um espelho, um espelho de pensamento que faz o sujeito auscultar-se a si próprio ao escrever sobre o objeto, seja ele qual for. O que é flagrado, fisgado, surpreendido, retratado e revelado é o fenômeno da ligação entre o sujeito e o objeto, fenômeno que fornece o assunto para o ensaio. O termo shot ilustra melhor a impressão que eu tenho: o sujeito leva um tiro do objeto, como um flash de uma máquina fotográfica e o objeto que surge diante dele aparece inteiro em um clarão. Nas histórias em quadrinhos, um balãozinho com uma lâmpada acesa dá uma boa imagem deste shot. O início, o fim e os meios desta idéia vêem de uma vez só: a simultaneidade de seus aspectos é pungente demais para ser submetida a uma ordem imposta de fora.

Assim o ensaísta vai falando de si através do seu punctun
[iii], da ferida, da flechada, da bala que fez um furo no muro que separa sujeito e objeto. Este espaço que é um buraco é o espaço da identidade, da experiência relevante: é o espaço do ensaio. Recorro de novo a outra expressão de Roland Barthes, já que ele vem se impondo desde o título. “A pressão do indizível que se quer dizer”. Este indizível que se precisa dizer (que precisa ser dito, como diria André Gide) é o objeto universal do ensaio, independente da sua manifestação particular em um assunto qualquer. O punctun do Barthes, o “estalo”, o que “o anima” como uma “aventura”, é a aventura da produção de sentido.

A filosofia de Kant se propôs a delimitar o que o homem pode e o que o homem não pode conhecer. Esta delimitação, porém, não restringiu os limites do homem, mas ampliou-os, pois ela deu ao homem a liberdade para que ele pensasse – mesmo sem chegar a efetivamente conhecer – tudo o que quisesse. O ensaio é, para mim, exatamente isso: a possibilidade de pensar alguma coisa sem o peso de ter que chegar a uma verdade sobre ela; abordar um objeto sem manipulá-lo, sem impor a ele uma utilidade ou qualquer outra coisa. E Kant mostra o quanto é relevante pensar sobre as coisas que não podemos realmente conhecer. Até o si-mesmo, a coisa em si do sujeito. Na Crítica da faculdade do juízo ele diz: “A consciência de si mesmo está, pois, muito longe de ser um conhecimento de si mesmo.” Mesmo que não seja possível conhecer-se por completo, tentar conhecer-se é uma necessidade vital. O instrumento de exercício da liberdade de pensar o que não se pode conhecer é a imaginação. Desta forma, Kant eleva a imaginação a um status de faculdade VIP do conhecimento. É através dela que o homem quebra as regras do conhecimento, extrapola os seus limites e exerce a sua liberdade. Ele explica por A + B porque é que imaginação e liberdade andam sempre de mãos dadas (pois deve ter sido assim desde o início dos tempos): a imaginação é a fada-madrinha da produção de sentido. E o ensaio transita neste universo de imaginação e liberdade.

Barthes vê as fotos que o ferem como pontuadas (uma pequena dissonância imagem/verbo). O ensaio também sugere uma espécie de dissonância, na medida em que, por trás das palavras, está o que não é dizível. O ensaio é fruto da revelação de uma imagem que exige o verbo para não se desvanecer, para prolongar no tempo e no espaço a sensação daquele shot, daquela flechada do cupido que faz o homem se apaixonar pela sua própria humanidade. Por isso Montaigne faz questão de frisar que ele mesmo é o seu assunto, que seus ensaios são um exercício de autocontemplação.

Mas o que tem de interessante nisso para quem lê? Qual é a graça, para o leitor, que o ensaísta fale de si? Para Montaigne, muito simples: “Cada homem leva em si a forma inteira da humana condição.”
[iv] Esta é uma afirmação inteira, digna de um homem inteiro. Mas um homem inteiro também se contradiz (e sua contradição o completa). Montaigne, no ensaio Do Arrependimento diz que “Outros formam o homem, eu relato a seu respeito.”[v] Mas, no ensaio Da educação das crianças ele se detém apaixonadamente neste assunto da educação, e ao sugerir e orientar a educação, ele forma, e forma pelo discurso. Mas nos outros ele forma pelo exemplo. E aqui chegamos a um ponto chave desta exposição: o exemplo.

Vejamos o exemplo de Montaigne. Erich Auerbach chamou a atenção para o contexto histórico dos Ensaios. Ao escrever “o primeiro livro da autoconsciência leiga
[vi], Montaigne critica, em diversos momentos, a cultura livresca e a sabedoria científica. Ainda no ensaio Da educação das crianças, ele diz: “(...) para um rapaz que mais desejaríamos honesto do que sábio, seria útil que se escolhesse um guia com cabeça bem formada, mais do que exageradamente cheia e que, embora se exigissem as duas coisas, tivesse melhores costumes e inteligência do que ciência.”[vii] Com este tipo de discurso, Montaigne foi o primeiro exemplo do modo de pensar daquela classe de homens dotados de uma cultura geral não-especializada, que despontava entre a burguesia urbana e a aristocracia, que tinha melhores costumes e inteligência do que ciência. A relevância do exemplo está no fato de que foi através dos Ensaios, através da resposta à manifestação do ensaísta, que esta classe ganhou expressão. Foi quando ela se constituiu enquanto público leitor, que se sentia destinatário (interlocutor) daquele discurso, que começou a ganhar unidade e consciência de si. Não é à toa que desta classe surgiu a concretização da crítica como parte indispensável da forma de ver o mundo moderno.

O sujeito como exemplo, a figura do ensaísta, convoca para o jogo o seu duplo necessário: o interlocutor. Quem é o interlocutor? O que ele representa? Quando o ensaio assume a forma de carta, endereçada a uma pessoa específica, a problemática do interlocutor fica para escanteio, como que adiada: o ensaísta tem a oportunidade de dar ao seu interlocutor uma definição no espaço e no tempo, uma dimensão de realidade. Mas quando não é o caso, o interlocutor é um amigo imaginário, como o que as crianças inventam e com quem conversam sobre as suas descobertas constantes. Este amigo imaginário tem uma semelhança com o ensaísta, como se este tivesse criado um desdobramento de si mesmo, ou melhor, um leitor de si mesmo. O interlocutor imaginário é aquele alguém que sempre escuta, de quem estávamos falando no início, por causa da frase do Gide. O interlocutor do ensaio é um exemplo de leitor.

E o que tem de interessante, para o leitor, neste jogo entre o sujeito que escreve e o seu interlocutor imaginário? O interessante é a semelhança, tanto entre o ensaísta e interlocutor imaginário, como entre o interlocutor imaginário e o leitor. Pela semelhança, o leitor se identifica com o ensaísta quando este funciona como exemplo de uma força da natureza que precisa ver o mundo como obra de arte, como coisa bela ou mistério inexplicável e, ao mesmo tempo, pretende que esta experiência seja falada e compartilhada. Lukács diz que o paradoxo do ensaio é quase o mesmo do retrato
[viii]: a questão da semelhança, que pode existir até sem que haja um referencial definido. O sujeito do ensaio também carrega uma semelhança que, como no retrato, sugere uma vida. Ele é o exemplo de uma característica pontuante da condição humana: a vida que punge e anima, a centelha de identidade que o ser humano sente em um momento de emoção estética, fazendo a vida revelar uma pista do seu sentido e despertando o olhar para a sua intratável realidade.

Foi aquela consideração do Lukács, comparando o ensaio com o retrato, que me fez lembrar das considerações de Barthes sobre a fotografia e, com isso, comparar também o ensaio com a fotografia. Se observarmos a semelhança entre o retrato (ou auto-retrato) e a fotografia (ou auto-fotografia), vemos que são tão parecidos quanto diferentes. São parecidos no produto final – embora a semelhança na fotografia não seja motivo de assombro – mas são diferentes nos seus meios. A fotografia pode ser instantânea, mas o retrato precisa de tempo para ser construído. A combinação destas duas coisas – o instantâneo e o elaborado – me faz pensar que, no ensaio, o objeto é como o flash da fotografia, e o texto é como o conjunto de pinceladas do quadro. Por isso, quando Barthes diz que a fotografia transforma o sujeito em objeto, eu penso: o ensaio também. E o que Montaigne relata são os processos (como as pinceladas de um retrato) de uma formação que vem de dentro, como a imagem latente no negativo esperando ser revelada, como a realidade da vida ansiando por ser tratável.

O processo de revelação se dá no ensaio quando ele é ferramenta para elevar o homem qualquer para o estado da condição humana, sublimando o particular em universal. O ensaio é a necessidade de celebrar este mundo vislumbrado que o homem quer compartilhar com seu amigo imaginário universal. “A razão é que sofremos com nossa admiração solitária e que gostaríamos que outras pessoas amassem apaixonadamente.”
[ix] O ensaio é o exercício do gosto que se discute. Porque no gosto, no ajuizamento, na crítica, o homem exerce a sua humanidade, cria sentido, e afirma a sua liberdade: a liberdade de dizer com o que se parece o todo da humanidade.

O ensaio é o espaço desta comunicabilidade espontânea e necessária, desinteressada e comprometida, que o homem sente diante de algo que o move a falar de suas impressões, e não da realidade dada como completa, pois esta se furtaria à expressão. Para Montaigne, quem tem que ser completo é o homem, a realidade está na experiência pessoal. Só esta é tratável. Ou melhor, retratável. Auto-retratável.


Daniele Avila, Rio de Janeiro, maio de 2006

[i] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 9

[ii] BARTHES, Roland. A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1984. ver pag

[iii] idem Capítulo 10

[iv] AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004 Pag 250

[v] idem Pág 250

[vi] idem Pág 273

[vii] MONTAIGNE, Michel Eyquem De. Ensaios 1.Brasília: Universidade de Brasília; Hucitec, 1987 ver pág

[viii] LUKÁCS, Georg. Soul and Form. Cambrige, The MIT Press, 1980

[ix] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 24

quarta-feira, maio 10, 2006

Para Flora, Fauna e Primavera ou Ela é Cheia de Som e Fúria

Como são as coisas. Veja você. Escrevi aquela baboseira toda sobre o silêncio provocado na jovem Daní de cerca de oito anos atrás – que mais parecem dezesseis – quando da leitura do José do Mann. E isso foi antes de ler A Estética do Silêncio daquela que dá título a este blog que – esteja claro – não é um blog.

E aí me pergunto se, no caos da minha humilde escrita, ficou claro que eu me referia ao meu silêncio e não ao silêncio daquela determinada obra – diga-se de passagem: cheia de som e fúria, sendo o som e a fúria muito particulares à palavra daquele autor.

Então, hello darkness my old friend, I´ve come to talk with you again... Nada mais fútil do que falar do silêncio. E pior: sozinha... Ótimo! Vamos lá. Mudo de assunto e continuo falando da mesma coisa.

Querida Susan,
Na primeira vez que eu te vi, você estava sorrindo. No entanto, infelizmente, já estava morta. Você estava bem bonita naquela parede do MAM, e o peso do seu sorriso me fez parar longamente naquele salão frio, vazio e tão cheio de vibração pelos retratos filmados do seu amigo. Aliás, agradeça ao Warhol por mim, por favor, pois olha só o que ele fez: me apresentou a você em silêncio. Você se mexia pouco, mas com certeza estava viva. Estava de olhos abertos. E pensava. Eu não pensava, olhava apenas, pois não sabia quem você era, ou melhor, fora, e não tinha idéia do que viria a ser. Do que viria a ser para mim.

Hoje penso no silêncio daquele filme que na verdade era uma foto, ou foto que na verdade era um filme. Era um silêncio muito real: ninguém dizia nada. Um silêncio simples, que fazia parte daquela imagem na parede, tão concreta quanto a própria parede. O fato de não poder dizer simplesmente “foto” ou “filme” e nem mesmo “quadro”, era algo que sugeria: “silêncio”.

O silêncio carrega sempre a celebração do seu oposto: ele dá vontade de falar. E, como não poderia ser diferente, ele evidencia a dificuldade de falar. Até nas coisas simples da vida: imagine que você tem quatro lances de escada para descer junto com uma pessoa que você admira muito seriamente e com quem você raramente tem oportunidade de conversar. Você consegue formular uma frase relevante? Annie Hall diria, com razão: “La-di-da-di-da!” O silêncio da obra de arte é igual. Ela também não sabe mais o que dizer para a arte da qual ela faz parte, e então se cala e tenta não dizer nada. Mas sempre diz, e mais ainda quando se cala. Você diz que não existe silêncio num sentido literal. É, num sentido literal talvez não mesmo. Mas uma centelha de silêncio metafórico já é silêncio suficiente.

Este silêncio, seja da obra ou do artista, dá voz ao crítico. E o crítico é parte imprescindível neste constantemente renovado fim de jogo. Pois a cada silêncio, o crítico exerce seu esforço de busca de significado, a cada dissonância, o crítico empresta seus sentidos especializados para enxergar o belo. Neste sentido, o crítico é responsável pela sobrevivência do diálogo entre o artista e seu público, cujo papel muitifacetado você nomeia: patron, client, audience, antagonist, arbiter, and distorter of his work, todos representantes do seu laço servil com o mundo. Mas será que é possível um silêncio da crítica? Não seria isso o verdadeiro fim?

Isso me faz pensar na questão do interlocutor, em especial do interlocutor do ensaio. O interlocutor da obra de arte pode assumir qualquer uma destas formas, e talvez ainda muitas outras, mas o interlocutor do ensaio é sempre um amigo; um amigo especializado, mas um amigo. Você não acha isso muito bonito?

Bobagem. Muito bonito deve ter sido montar aquela peça, naquele lugar e naquela época...
“E no fim da apresentação das 14 horas do dia 19 de agosto, durante o longo e trágico silêncio dos Vladimires e Estragons que segue à notícia trazida pelo mensageiro de que o senhor Godot não virá hoje, mas sem dúvida há de vir amanhã, meus olhos começaram a arder de lágrimas.”
Enquanto você chorava pela primeira vez diante do seu Esperando Godot em Serajevo, no dia do meu aniversário em 1992, eu comemorava meus dezesseis aninhos me perguntando se queria ser atriz, diretora ou produtora. Ninguém me disse que eu poderia ser crítica. E a minha vontade de ser escritora estava tão bem guardada na minha Bolsa Amarela, que eu já nem me lembrava dela. Estava guardada como se guarda um “longo e trágico silêncio”.

Sempre me perguntei o que eu vou ser quando crescer. Eu me perguntei isso quando era criança, me perguntei isso na época do vestibular, me perguntei isso depois de ter abandonado a terceira faculdade, me perguntei isso na minha vida nômade de trabalhos injustificáveis. E me perguntei isso pela última vez recentemente, beirando os 30, quando você me xingou de provinciana porque eu nunca tinha lido Memórias Póstumas de Brás Cubas...

Stop! Fim do primeiro ato! Agradeço a machadada. Corri a ler no dia seguinte, em busca do tempo perdido. Aliás, interrompi a minha leitura de Em Busca do Tempo Perdido para recuperar minha falta com Machado de Assis, pois é de fato muito provinciano que eu leia À Sombra das Raparigas em Flor sem ter lido Memórias Póstumas de Brás Cubas. Só que mais importante do que esta redescoberta foi a resposta àquela pergunta infeliz. Entre um ensaio e outro, um WHAAAM! Conclusão dilacerante! Pois as condições de tal realização são frágeis demais, e ao alívio de poder responder com a única frase que ressoa no meu grande silêncio, junta-se a certeza aterradora de que esta decisão é trágica, de tão irrevogável:
Quero ser Susan Sontag.

(Por isso recorro às fadas-madrinhas-fofinhas da Bela Adormecida - Flora, Fauna e Primavera - pois vou mesmo precisar do triplo da sorte de um conto de fadas pra transformar este meu cérebro de abóbora em uma carruagem brilhante de significado.)