domingo, dezembro 03, 2006

Não existem níveis seguros para consumo destas substâncias - Igual a tudo na vida

Sobre Não existem níveis seguros para consumo destas substâncias em cartaz no Teatro Maria Clara Machado. Texto de Daniela Pereira de Carvalho, direção de Tato Consorti.
Por Daniele Avila

Arquivos vazios, pôquer, café e cigarros. Uma repartição pública sem utilidade, não muito diferente do cotidiano das pessoas em geral. Problemáticos, infelizes e desesperados esperam – ou já desistiram de esperar – por qualquer coisa que possa acontecer. A ação da peça se desenrola com a chegada de um elemento estranho, como um reagente químico detonador de pequenas explosões de laboratório. Entra em cena a personagem Cecília, um livro de auto-ajuda ambulante. Estes seres estão por aí, bem vestidos e penteados, querendo seu lugar ao sol. É realmente um prazer que pelo menos neste universo de ficção, ela seja mandada de volta para o nada de onde surgiu. O livro de auto-ajuda é uma ameaça muito desagradável. A neurose de Tereza é bem mais interessante. Aliás, é o que há de mais interessante no espetáculo.

O livro de auto-ajuda tem o seu oposto complementar: Hugo, o desajustado que faz do hábito da leitura uma fuga desesperada para a ficção. Não adianta ler Dante, Victor Hugo ou o que for: o pedantismo da citação usada como pílula de sabedoria revela no excesso de cultura livresca o perigo que corre uma pessoa com muitas referências de se tornar um elemento indesejável dentro de seu meio. Estas pílulas de sabedoria, jogadas por todo o texto, são como a pílula que Beatriz não toma: não fazem efeito. Beatriz lê, Vicente lê, Hugo lê. Mas lêem coisas bem diferentes. O vocabulário deles, no entanto – assim como a construção das suas frases – acaba ficando mais homogêneo do que deveria. A voz da autora transita entre as diferentes vozes, impedindo talvez que cada personagem tenha voz própria. Com exceção de Tereza, personagem que ganhou um matiz mais forte na atuação de Xuxa Lopes.

Talvez esta questão não seja tanto um problema, mas ganha destaque pelo desvio de timbre na voz em off. Em determinados momentos, este recurso é apenas usado como uma solução menor para o desenrolar da ação. Em outros, aparece como um olhar enviesado, um humor malvado, generoso e distanciado ao mesmo tempo. Ela encontraria mais fundamento nas mãos de um Cid Moreira, naquele tom do quadro do Mister M do Fantástico. Este narrador meio perverso acaba por ser o patinho feio da montagem, que talvez encontrasse sua família de cisnes num diretor com uma espirituosidade mais mesquinha.

As projeções fazem as vezes de um Ministério da auto-piedade. O conteúdo das frases tende a se dirigir apenas a um público mais jovem, com sua indignação inocente do tipo "ninguém me avisou que a vida seria assim". O legal é que o design de maço de cigarro contradiz o tom de protesto bradado aos quatro ventos. Mesmo se houvesse advertência para as coisas doloridas da vida, de nada adiantaria. Os conselhos prudentes são tão solenemente ignorados quanto as fotos sensacionalistas dos maços de cigarro.

E as histórias daquelas pessoas vão se desenrolando como numa comédia de costumes em escalas de cinza. Os conflitos do momento se resolvem de uma maneira ou de outra. Um novo episódio poderia começar a qualquer minuto. Mas a repartição é desfeita. Aquele buraco que parecia infinito chega ao fim. Bastou uma moça abrir uma janela.

É que as coisas que parecem infinitas acabam assim mesmo, sem advertência. E o que se tem a dizer depois é tão sem graça quanto o que dizem aqueles personagens em frases curtas, desnecessárias e sem brilho no fim da peça. Neste final estranho, sério candidato a corte no texto, há um rastro meio amargo de vida. Porque ela é cheia mesmo destes pobres pequenos posfácios. O problema é que na realidade não se tem o poder de simplesmente cortar estes apêndices. Afinal de contas, não vai tocar Belle & Sebastian se você se jogar pela janela.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Anish Kapoor - Um passo à frente e vertigem

Sobre Ascension, exposição de Anish Kapoor no CCBB
Por Daniele Avila

Ascension, que esteve no CCBB de julho a setembro de 2006, foi a primeira exposição individual de Anish Kapoor na América Latina, que reuniu trabalhos que sintetizariam algumas das preocupações básicas do artista, como por exemplo os conceitos de presença/ausência; estar/não-estar; lugar/não-lugar; sólido/intangível; materialidade/imaterialidade.

Wounds and Absent Objects é o "peixe fora d'água" da exposição. Em meio a peças cheias de apelo visual e tátil, a projeção fica deslocada e despropositada aos olhos do público ansioso do CCBB. Enquanto uns poucos se sentam no chão para assistir sem pressa, a maioria passa direto depois de conferir a projeção por cerca de cinco segundos. Ouve-se um ou outro bufando ou reclamando, provavelmente ferido pela ausência de objetos.

A sala que abriga cinco trabalhos parece uma casa de loucos: pessoas dando passos para frente e para trás, para um lado e para outro, se abaixando, se elevando e dando risinhos bobos diante de uma parede vazia; outros formam uma fila em espiral em torno de um grande cilindro de aço, como se estivessem na Disney; alguns pais tentam impedir que os filhos ultrapassem a faixa amarela, outros nem se incomodam.

O cilindro é chamado Pillar, onde uma pessoa pode entrar e experimentar a sensação de um abismo finito e vertical, por mais contraditório que isso possa parecer: um efeito visual que contesta a nossa confiança na solidez do chão, de uma parede de aço e do nosso próprio corpo. Alguns saem um pouco frustrados por terem enfrentado uma fila para isso. Mas um dos pontos interessantes da exposição é observar a expressão de cada pessoa, logo após sair dali de dentro: não existe repetição.

Iris e a obra sem título (escultura em bronze de 4,5 metros de altura) dialogam dentro do espaço, na medida em que ambas problematizam a sempre presente plaquinha que diz "é proibido tocar na obra" ou coisa parecida. Iris parece côncavo e convexo ao mesmo tempo; a escultura de bronze não desperta interesse de longe, mas quem se aproxima se detém por alguns instantes tentando entender por que ela produz um reflexo invertido; de repente, um pequeno sobressalto: os olhos identificam sua forma oca, que se revela e se disfarça contra a vontade de quem vê.

Nesta mesma sala uma tensão na parede guarda a graça do trabalho de Anish Kapoor: White Dark VI e When I am Pregnant, respectivamente, um buraco e uma protuberância na parede, polidos e iluminados de forma a se mostrar apenas de determinados ângulos. Assim como Pillar, elas provocam, em um passo à frente, uma sensação de vertigem, embora com outro tom: há uma considerável diferença entre produzir ilusão com qualquer material sólido e produzir ilusão com a parede de um museu.

E por falar em parede, To divide tem o seu encanto. Mais uma vez, o tema parece mesmo ser a parede do museu. Só que desta vez, Kapoor não está mais falando da parede em que se penduram obras, mas da parede que separa o museu da rua. O peso do material (cinco toneladas), sua solidez, aquela imensidão de vermelho e a textura que indica um movimento interrompido dão uma idéia de transbordamento, como aquela cena do filme O Iluminado de Stanley Kubrick (me pergunto se foi com todo aquele ímpeto que a arte transbordou dos museus). Este trabalho incita a pergunta espirituosa, sobre o movimento contrário e anterior: como é que isto tudo veio parar aqui dentro?

Quanto a Ascension, instalação que dá nome à exposição, a versão do catálogo parece bem mais interessante do que aquela no foyeur do CCBB, que revelava, ou melhor, ostentava demais os mecanismos e anulava qualquer possibilidade de imaginação. Segundo Anish Kapoor, o tema é a única razão de ser artista. O que esperar dos temas de um artista que cresceu na Índia mas foi criado como judeu e mudou-se para Londres na adolescência? No caso da obra em questão, o artista associa o tema com a coluna de luz que guiou Moisés ao deserto. Mas o episódio da mitologia hindu que envolve uma coluna de fumaça é muito mais interessante. Na história de Moisés, a coluna de fumaça faz um movimento para cima e tem um fim: conduzir Moisés ao deserto. Na de Brahma, Vishnu e Shiva, a coluna de fumaça não leva ninguém a lugar nenhum, é infinita, tanto para cima, quanto para baixo; sua elevação pressupõe imediatamente uma descida, idéia que traria um peso diferente para o nome Ascension. A que está no catálogo permite este desvio para baixo pelas frestas na tábua corrida do chão; a que estava no CCBB impedia a variação de ângulo do olhar por causa da presença ostensiva da máquina de fumaça.

Em entrevista ao curador da exposição, Kapoor afirma que a maioria dos seus trabalhos se refere mais à escuridão do que à luz. Acho que não foi o caso desta exposição especificamente. Tudo estava claro e reluzente, talvez com exceção de To divide. Não seria nada mal ter vivenciado um pouco mais de escuridão em Ascension.