segunda-feira, julho 23, 2007

O animal do tempo


(uma versão mais elaborada está publicada na Bacante)
O texto é o protagonista mesmo, neste caso. Nem sempre é, naturalmente, apesar de ouvirmos muito que determinado trabalho (direção, cenografia, etc) serve – bem ou mal – ao texto. Há muito tempo as coisas não são mais assim... Mas continuam sendo. Neste caso, o que tem de especial em cena é o texto sim, o que não significa que as coisas devem servir a esta entidade suprema. Pelo contrário, este texto é que parece reivindicar servir a alguma coisa, ele parece reivindicar uma atitude, ele mesmo parece querer servir o teatro de uma outra cena. Ele tenta. Ele propõe, entre outras coisas, que o lugar da cena, agora, é a boca (oi, Beckett); a boca que se abre para o interior da caixa craniana, a boca que tem língua que produz linguagem, tudo em parceria com o cérebro. A língua e o cérebro resolvem se debruçar um sobre o outro. A boca é o lugar do pensamento. O pensamento come a língua, mastiga as palavras. Podemos pensar até que já que o nosso aparelho fonador não serve exclusivamente para a fala, e que na verdade, o que a boca faz de mais "importante" é comer, podemos pensar que o que o texto do Novarina faz, em vez de falar, é devorar a cena. O mais que centenário fluxo de consciência está fazendo o quê em cena?

Pois é. Acho que ele tem muito que fazer em cena. Mas acho que neste caso, desta montagem, não faz tanto. Ele propõe vários elementos, entre eles: uma dose de abstração, certa comicidade, um ritmo próprio, um esvaziamento, um tempo diferente que com certeza demanda um espaço diferente. No primeiro momento da peça, um grande prazer: um espaço diferente. Estamos sentados numa sala (de projeção – acima de nossas cabeças há um projetor e a sala tem as paredes pintadas de preto) e, diante de nós, nenhuma tela real, nem parede; vemos um espaço de transição: um degrau de elevação forma uma espécie de pequeno tablado, menor que a sala da platéia, ladeado por paredes que o estreitam e o teto rebaixado, que dão uma impressão interessante de perspectiva (que se inverte) porque, depois deste espaço mais estreito, abre-se uma sala bem maior, com o (longo) chão coberto de papéis e, no fundo, a atriz num banquinho, lá longe. Achei muito interessante esta distância, logo pensei que seria um ótimo desafio fazer a peça assim, sem que o espectador conseguisse discernir com precisão o olhar da atriz, afinal, o olho no olho entre ator/espectador é o clichê preferido do monólogo. Não deu outra. Pouquíssimos minutos de peça e ela já tinha deixado a distância pra trás e estava aqui, na beirada do pequeno palco, falando olho no olho com a platéia. E assim vai, a peça toda. O próprio texto já tem um vetor: da boca do ator ao ouvido da platéia. Não vejo encanto em sublinhar isso com olhos e gestos. E não se trata de "quarta parede", já está dado que não tem parede, mas tem algo de anacrônico na forma escolhida: o conteúdo desconstrói a linguagem, mas a forma tenta reparar isto o tempo todo. No texto, um eu que é diverso, que brinca de existir e não existir, que joga com a sua definição, que manipula palavras como se estas fossem objetos virtuais; no corpo, uma postura declamatória, um gestual que explica o que não tem explicação, uma dicção que sublinha e parece tentar salvar o que se "perde" com a desconstrução da língua. Eu sabia que ia ouvir um jogo diferente do comum, mas esperava ver isso também. E tudo que era visível em cena parecia tentar compensar o que era desdito. Tem discurso demais para um (não)discurso, tem rosto demais para um (não)personagem. Fiquei surpresa ao pensar que a montagem estava indo na direção contrária do que eu pensava que o texto permitia. Passei a peça toda tentando ver de outro modo, tentando catar uma consonância. Achei algumas, naturalmente.

A música é sempre um dado de abstração. O instrumento musical é um objeto que fala uma língua que nem dos objetos é. Achei bonito que o interlocutor dela pudesse ser um objeto que não fala a mesma língua. Ele não chega a ser um interlocutor, é quase só um eco, quase também uma bengala. Mas quando ela apenas fecha o acordeom, sem que este faça música, ele emite um sopro, um vazio sonoro cheio de significados possíveis. Fica bem bonito. O apoio para partitura (não sei o nome) – também vazio - é ótimo, no entanto, o vazio ganharia mais força se ela olhasse para ele, permitindo que esta ausência apresentasse a sua presença. Por falar em eco, é interessante quando ela faz a voz de um eco e o som vai sumindo enquanto o movimento continua. Fiquei esperando mais brincadeiras dessas com o som, o vazio, a embocadura. A comicidade também acontece, geralmente quando o texto vira letra de música, talvez porque, nestes momentos, a montagem abre mão de tentar cavar uma narrativa onde ela não existe. O jogo aparece nestas horas. (No dia em que eu assisti, tinha uma atriz-amiga-da-atriz rindo muito alto na platéia, o que tirou um pouco a graça da coisa toda.) O esvaziamento fica comprometido por uma preocupação excessiva em se fazer entender quando entender não é o caso; e quanto ao ritmo e um possível tempo diferente, achei estranho. Achei que o tempo de tudo era um tempo muito normal, um tempo de contar uma história. A cadência do espetáculo nega um pouco o fluxo do texto. Mas pode ser só impressão. Eu veria de novo. Veria de novo com prazer.

De qualquer modo, é bem raro poder presenciar no teatro carioca alguém que se arrisque com um texto contemporâneo, com leituras contemporâneas ou com a própria cena contemporânea. Pena que não haja muita convergência entre estas três coisas. A gente fica sempre com um pé (às vezes dois) em algum lugar do passado. Normal, eu acho.

Daniele Avila, julho de 2007.