Traço - Observações sobre Medéia - A desestrutura da mulher trocada: notas sobre Observações
(para um senhor particularmente malvestido)
Texto de mulher. Traço_Observações sobre Medéia parece tecido costurado rasgado por mulher. Que voz é essa que fala de Medéia –ainda – e vale tão a pena? É que não fala de Medéia. Fala por Medéia. Assume a voz dela na primeira pessoa, mesmo quando se refere a ela à distância. A questão é que essa distância perdeu sua realidade. Não tem distância. "Eu vim a nado." Uma imersão nela.
Eu fui ver pela primeira vez e ficou na minha cabeça que o título era notas (em vez de observações) sobre Medéia. Notas. Acho um trabalho heróico enfrentar as próprias notas. Notas são rastros de idéias, o pouco de discurso que quase pega o pensamento, delírios aleatórios para os olhos dos outros, mas não necessariamente de todos os outros. E assim se justifica, pra quem precisa de justificativa, uma peça de notas, de tentativas de desenvolver desdobrar revelar notas para algum outro. É como ler um livro sublinhado, com setas, frases curtas com todas as palavras abreviadas, outras palavras soltas, ilegíveis, títulos de outros livros, as iniciais de um outro autor. As notas são o fio de Ariadne no labirinto do outro. As notas são uns buracos pra Alice entrar.
Mas então fui ver pela segunda vez e vi que não tem nada de notas. Que são observações. Por isso que eu vejo as coisas mais de uma vez. Eu invento muito. Meu olhar tem pernas. Observação é isso também, um olhar que se move e que se detém nas coisas. Traço também é rastro, um rastro meio autônomo talvez. "Ela tem traços da tia" por exemplo. Será que Medéia tem traços de Circe? Não foi ela que transformou Jasão em porco, fazendo todas as suas vontades?
Toda mulher abandonada tem traços de Medéia, uma bagunça interior que não cabe mais em tragédia, em drama bem feito, em filme de Hollywood. A voz da dor de cotovelo – e uma dor de cotovelo mítica! – tem suas próprias regras. Peça para uma mulher contar a história de um abandono recente, e ela vai deixar Heiner Müller no chinelo. A desestrutura é o seu chão, seu norte, seu fio condutor. Os vetores da sua dor de Medéia apontam para todos os lados. Ela não tem mais história.
Mas a peça começa. O herói está lá, todo sóbrio com seus mapas e linhas retas. Mesmo com a carne moída e a alma amesquinhada, ele traça linhas retas. Mesmo diante de um futuro incerto. No seu silêncio barbudo, uma virilidade, um isolamento, várias formas de poder. O poder de ser homem fala alto quando ele diz "Eu sou o herói". Herói é sempre masculino.
Texto de mulher. Traço_Observações sobre Medéia parece tecido costurado rasgado por mulher. Que voz é essa que fala de Medéia –ainda – e vale tão a pena? É que não fala de Medéia. Fala por Medéia. Assume a voz dela na primeira pessoa, mesmo quando se refere a ela à distância. A questão é que essa distância perdeu sua realidade. Não tem distância. "Eu vim a nado." Uma imersão nela.
Eu fui ver pela primeira vez e ficou na minha cabeça que o título era notas (em vez de observações) sobre Medéia. Notas. Acho um trabalho heróico enfrentar as próprias notas. Notas são rastros de idéias, o pouco de discurso que quase pega o pensamento, delírios aleatórios para os olhos dos outros, mas não necessariamente de todos os outros. E assim se justifica, pra quem precisa de justificativa, uma peça de notas, de tentativas de desenvolver desdobrar revelar notas para algum outro. É como ler um livro sublinhado, com setas, frases curtas com todas as palavras abreviadas, outras palavras soltas, ilegíveis, títulos de outros livros, as iniciais de um outro autor. As notas são o fio de Ariadne no labirinto do outro. As notas são uns buracos pra Alice entrar.
Mas então fui ver pela segunda vez e vi que não tem nada de notas. Que são observações. Por isso que eu vejo as coisas mais de uma vez. Eu invento muito. Meu olhar tem pernas. Observação é isso também, um olhar que se move e que se detém nas coisas. Traço também é rastro, um rastro meio autônomo talvez. "Ela tem traços da tia" por exemplo. Será que Medéia tem traços de Circe? Não foi ela que transformou Jasão em porco, fazendo todas as suas vontades?
Toda mulher abandonada tem traços de Medéia, uma bagunça interior que não cabe mais em tragédia, em drama bem feito, em filme de Hollywood. A voz da dor de cotovelo – e uma dor de cotovelo mítica! – tem suas próprias regras. Peça para uma mulher contar a história de um abandono recente, e ela vai deixar Heiner Müller no chinelo. A desestrutura é o seu chão, seu norte, seu fio condutor. Os vetores da sua dor de Medéia apontam para todos os lados. Ela não tem mais história.
Mas a peça começa. O herói está lá, todo sóbrio com seus mapas e linhas retas. Mesmo com a carne moída e a alma amesquinhada, ele traça linhas retas. Mesmo diante de um futuro incerto. No seu silêncio barbudo, uma virilidade, um isolamento, várias formas de poder. O poder de ser homem fala alto quando ele diz "Eu sou o herói". Herói é sempre masculino.
Sem pedir licença, entra a voz da dor de Medéia. O lugar do grito é embaixo. O grito de dor vem do chão. Uma dor que rodeia, por baixo, que vem em círculos, se afasta e volta mais forte. Não se sabe de onde ela vem, nem por onde ela vai sair. Ela vai bater o pé na porta e entrar. A dor é protagonista. A dor é o espetáculo. A dor é a exposição.
Ela entra. Ela vem afogar e lavar suas mágoas. A desestrutura da mulher trocada é um vestido vazio que fica em pé sozinho num canto calado esperando o desespero passar. O vestido é sua armadura e seu veneno. Quando ela entra e deixa o vestido, é como se dissesse: o que me faz parecer sã, socialmente aceitável, digna (às vezes nem é dignidade, é senso estético), o que faz parecer que eu estou normal, vai ficar aqui separado. Ali, no centro, vou dar voz à bagunça que reina aqui dentro, escondida nesse vestido.
A desordem da mulher abandonada tem muitos pontos de interrogação. Muitas perguntas. Ela, que já matou e vai matar tanto... e Clitemnestra? Não mata por quê? E Cassandra? Agamêmnon? Quem pode matar? Quem pode falar? Quem tem voz pra falar do homem e seus motivos fúteis? Ela é enjaulada nas suas elucubrações, nos seus questionamentos, na sua raiva. Seu amor é seu carcereiro. E ali, entre restos de casa e vaidade, ela dá o seu espetáculo, ela faz a sua exposição. O tempo que passa pra ela é um tempo humano. As gotas vão caindo na sua bacia/caldeirão em intervalos aleatórios. A guitarra acompanha as gotas, como um tic tac natural, um tempo dado por mão humana. Um afogamento interrompido paira sobre a sua cabeça. Ela domina a natureza. Ela, feiticeira, manipula fenômenos. Ela tem a morte nas entranhas. As cabeças dos seus filhos começaram a queimar quando saíram de dentro dela.
Jasão rodeia. A voz de Jasão é cheia de discursos coerentes, de frases saídas do forno. "Medéia, a idade te traz apenas rugas." Aqui Jasão não é mito. É só um homem. Jasão sem Medéia não é ninguém. Um homem com seus motivos fúteis. Jasão ronda. Ele não é o espetáculo. Foi Medéia quem fez Jasão. Medéia macumbeira, com seus bálsamos, ervas, folhas, cebolas, constrói o herói de Jasão no seu caldeirão de cheiros. Estrangeira, deslocada, Medéia é Medéia só.
Ela entra. Ela vem afogar e lavar suas mágoas. A desestrutura da mulher trocada é um vestido vazio que fica em pé sozinho num canto calado esperando o desespero passar. O vestido é sua armadura e seu veneno. Quando ela entra e deixa o vestido, é como se dissesse: o que me faz parecer sã, socialmente aceitável, digna (às vezes nem é dignidade, é senso estético), o que faz parecer que eu estou normal, vai ficar aqui separado. Ali, no centro, vou dar voz à bagunça que reina aqui dentro, escondida nesse vestido.
A desordem da mulher abandonada tem muitos pontos de interrogação. Muitas perguntas. Ela, que já matou e vai matar tanto... e Clitemnestra? Não mata por quê? E Cassandra? Agamêmnon? Quem pode matar? Quem pode falar? Quem tem voz pra falar do homem e seus motivos fúteis? Ela é enjaulada nas suas elucubrações, nos seus questionamentos, na sua raiva. Seu amor é seu carcereiro. E ali, entre restos de casa e vaidade, ela dá o seu espetáculo, ela faz a sua exposição. O tempo que passa pra ela é um tempo humano. As gotas vão caindo na sua bacia/caldeirão em intervalos aleatórios. A guitarra acompanha as gotas, como um tic tac natural, um tempo dado por mão humana. Um afogamento interrompido paira sobre a sua cabeça. Ela domina a natureza. Ela, feiticeira, manipula fenômenos. Ela tem a morte nas entranhas. As cabeças dos seus filhos começaram a queimar quando saíram de dentro dela.
Jasão rodeia. A voz de Jasão é cheia de discursos coerentes, de frases saídas do forno. "Medéia, a idade te traz apenas rugas." Aqui Jasão não é mito. É só um homem. Jasão sem Medéia não é ninguém. Um homem com seus motivos fúteis. Jasão ronda. Ele não é o espetáculo. Foi Medéia quem fez Jasão. Medéia macumbeira, com seus bálsamos, ervas, folhas, cebolas, constrói o herói de Jasão no seu caldeirão de cheiros. Estrangeira, deslocada, Medéia é Medéia só.
Daniele Avila, 14 de abril de 2007
Traço_Observações sobre Medéia está em cartaz no SESC Copacabana. Direção de Fábio Ferreira, com Oscar Saraiva e Marina Vianna. Grupo Odradek