sábado, maio 26, 2007

ISTO É MEU

isto é belo
isto é arte
Isto é meu

FANTASMAS: Queremos ser vanguarda/queremos o novo/vamos destruir o velho/teatro é chato/a arte com 'a' maiúsculo é elitista/vamos acabar com isso/vamos fazer um manifesto/a arte morreu/a arte morreu de novo/quem é hegel?/brillo box? O que é brillo box?/vamos demolir tudo, mesmo o que a gente não conhece

OUTROS: E se abríssemos mão dos cânones? E se tentássemos esquecer que eles existem? Por que você quer o lugar do velho? O velho fala muito alto? Você se sente ofuscado? Você não consegue abrir um buraco novo no mundo? Que saco isso de ter que ser novo.

O CANDIDATO A CÂNONE: O "novo" é a nova "aura".

CORO: Os cânones são opressores. Não podemos conviver com eles. Esquece o cânone. Esquece.

MEU: Não dá. Eu amo os cânones. A questão é que eles não podem ficar lá, sentados nas suas poltronas imaginárias. Eles precisam ser perturbados, eles precisam continuar falando, mas podem dizer outras coisas. Então convidamos os cânones a sair das bibliotecas, dos museus, das europas, e trazemos um ou outro pra uma mesa de bar. Vamos embriagar os cânones. Vamos fazer perguntas as mais constrangedoras. Vamos tirar a calcinha do cânone. Não, não precisa tanto, se não for o caso. Vamos só deixar a porta aberta (aquela "porta teórica e que de porta mesmo só tem uma indicação sumária" como diria Nelson Rodrigues). E então você entra no reduto sagrado do cânone. Você está de pé, afinal de contas – dizem – nossos joelhos não se dobram mais. Você passeia entre os nomes nos seus singelos ou suntuosos pedestais. Você olha em volta num estado de dispersão atenta. Você está pescando cânones. Sua isca, uma minhoca qualquer, que é o que você tem, está suspensa por ali. Uma coleção de sensibilidades antigas - ou até novas porém validadas – canta seu canto sedutor. E lá está você, preso no mastro talvez, mas esperando/procurando o seu peixe grande. Alguns nomes parecem olhar para o próprio pedestal com total indiferença. Eles dizem: "você pode me ler se você quiser". Outros praticamente se impõem. É difícil escolher. Você ouve... "me pega"... "me olha"... "me resgata"... "me analisa"... "me desloca"... "me contempla"... "me estuda"... "me copia"... "me tira daqui"... "me ama"... "essa moldura tá me machucando"... "me sublinha"... "me digitaliza"... "me destrói"... "me traduz"... "me compra"... "me come"... hein?

ME COME.
Eu já ouvi isso antes.
Me come. - diz o cânone.
Posso mesmo? - você pergunta.
Você me devora e, assim, me decifra.

Você fica enorme. Depois muito pequena. E às vezes não acontece nada. Nossos joelhos se dobram sim, mas é pra colocar as mãos no chão. Porque elas estão muito limpinhas. E não dá pra pegar no canône com as mãos limpas. Você está de quatro pelo cânone. Você fica de quatro pro cânone. Você e o cânone têm agora uma grande intimidade. Você está comendo o cânone. Aliás, vários.

Eles são amigos, mesmo quando rivais, o diálogo entre eles é intenso e prolixo, cheios de silêncios de Pinter e de discursos de Osborne; de convenções e seus negativos; de jogos e linguagens; solilóquios precisos e limpos, manchados de Beckett e Ensor; internos de família e espaços outros, explodidos, extintos. Nem todos se calam como Joyce nos seus finais. Pactos se estendem do nórdico ao grande sertão do Brasil. Muita Europa. Muita Europa... Faustos todos, pagaram seus preços. Até dar tiro na cabeça um ou outro já deu. "Muito trabalho" eles dizem. "Muito trabalho". Tanto trabalho pra ficar aqui embalsamado, feito múmia. O mofo é o preço da aura?

"Tira minha aura."

E você vai tirando, devagar, a aura do seu cânone. Eu disse: "seu canône". E assim vamos, devorando cânones, mastigando cânones, engolindo e cuspindo cânones. Há quem saiba até mesmo vomitar cânone. Mas passou da minha goela, é meu. Isso ninguém pode negar. Enzimas digestivas são criaturas sem cerimônia. Mas tem também as enzimas cerebrais. Despudoradas enzimas cerebrais. Tradutoras inatas, traidoras também. Devoradoras de esfinges. Mas toda europa tem suas fronteiras. Pois a fala, a escrita... aí são outros quinhentos. A polícia federal da linguagem produtiva é cascuda. Muita censura. Muita censura... O cânone tem passe livre pra entrar pelos olhos, ouvidos, por todos os sentidos tem passaporte de cidadão europeu, mas na hora de botar o cânone pra fora, mastigado, digerido, transformado, "meu", na hora de fazer ele sair pela garganta, pelas mãos que dóem de tanto escrever, pelas pontas dos dedos de unhas curtas pra digitar melhor... aí ele é muçulmano, latino, boliviano nos Estados Unidos, pária. Porque no espaço público a aura se reconfigura imediatamente. Passou o efeito: fiquei pequena de novo.

"Isto é meu" é muito difícil de dizer. Minha isca, minha minhoca qualquer, minha moqueca de peixe grande... se é belo, não sei, se é arte, não sei. Mas se é meu (será que é meu mesmo? Não é uma adaptação? Um plágio? Um pastiche? Tenho que pôr nota de pé de página?) tem que ter seu lugar no mundo. Mas "vale tudo"? "Vale tudo" é uma armadilha pros trouxas. Não vale tudo não, Pedro Bó. Do nada nada vem. E tira o seu nada daqui. O seu "nada" não pode devorar o meu "meu".

Quem pode dizer isto é arte, quem pode dizer isto é belo? Quem se interessa? Talvez seja isso, é quem se interessa que pode dizer "isto é belo", "isto é arte", no seu interesse desinteressado; os inferiores superiores atentos iguais do professor Jacotot. Por puro afeto. Mas dizer com afeto "isto é meu" está muito, mas muito fora de moda mesmo. Experimenta. Diz: Oi. É, você, você mesmo que não me conhece, quero te dar uma coisa, você que me olha e não me vê, presta atenção em mim um instante, você que troca meu nome e some nas altas da madrugada, que nem conhece essa música do Djavan que eu acabei de citar, que está distraído aí, olha pra cá: toma; ISTO É MEU, ISTO É BELO E ISTO É ARTE, é puro afeto, agora é seu. Faz o que você quiser, mas faz alguma coisa: me pega, me olha, me resgata, me analisa, me desloca, me contempla, me estuda, me copia, (me tira daqui), me ama, (essa moldura tá me machucando), me sublinha, me digitaliza, me destrói, me traduz, me compra, me come.


Um beijo,
Daní
26 de maio de 2007

terça-feira, maio 01, 2007

Larvárias - Heterotopia do afeto possível. Ou possível heterotopia do afeto.

Quase sobre Larvárias, mas na verdade não.

O lugar que se constrói
Antes da definição
É o afeto

O teatro é o lugar do espaço possível. Ali, qualquer mundo é, pelo menos, viável. A virtualidade é sua graça. O que é literal, o que já está dado, as grandes verdades, tudo isso parece meio anacrônico no teatro, parece que não devia estar ali. O teatro já é um espaço real; sobrepor outra realidade, impor um mundo dado sobre ele é como aterrar um pedaço de oceano para construir edifícios. Quero dizer: faz-se muito disso, mas desenvolvo uma crescente antipatia por este tipo de procedimento para com os espaços em geral. Roubar a virtualidade do espaço teatral é como calar a natureza de um mar.

É com alívio que me encontro de repente num domingo no Teatro Poeira e mais de repente ainda fora dele, num lugar sem lugar, num universo sugerido a partir das potencialidades daquele chão. Um lugar em que se pode mas não pode entrar, que se deixa estar dentro e fora. Um fatia no tempo, um desvio do tempo real.

EU - Socorro, Foucault! Como você dizia mesmo? Das heterotopias?
FOUCAULT – "Mais ce qui m'intéresse, ce sont, parmi tous ces emplacements, certains d'entre qui ont la curieuse propriété d'être en rapport avec tous les autres emplacements, mais sur un mode tel qu'ils suspendent, neutralisent ou inversent l'ensemble des rapports qui se trouvent, par eux, désignés, reflétés ou réfléchis."
EU - É por aí. Um lugar que pode se relacionar com todos os outros, um lugar de suspensão, de invenção. Você diz que o barco - navio? caravela? - é a heterotopia por excelência. Entendo... Acho um pouco que é porque o barco faz de forma literal, real, o que uma experiência estética faz, a de entrar no mar da coisa mantendo-se suspenso sobre ele. Se o afeto fosse um lugar, seria uma heterotopia. Você não acha? (Silêncio) Tenho pensado muito sobre o afeto, o lugar do afeto no juízo, na arte... (pausa, como se alguém fosse responder) Foucault?... (desistindo da coisa toda) Esquece.

O lugar do afeto é muito real. Parece que não, parece interno, mas não é. O espaço do afeto é externo porque é um espaço de configuração de relações, de tecitura de redes de afinidades, de movimento, de expressão que escapa. O afeto não se basta. Ele é, necessariamente, um vetor, mas um vetor apenas. É um antes, um quase. Ele é a possibilidade de constituição de alguma coisa. As criaturas de Larvárias são, foram, pra mim, seres de afeto. Máscaras de quase seres, ou seres quase alguma coisa. O ser em Larvárias é um quase. Um recorte no tempo de um ser que é um não-tempo-ainda, um tempo de um ser que não o percebe como tal, que não se vê ainda como ser-no-tempo. O afeto também não precisa do tempo, ele dispensa narrativas.

A máscara é sempre uma tensão entre algo que poderia se revelar mas não vai, e que mesmo assim não abandona nunca essa possibilidade. Aquele ator pode, a qualquer momento, tirar a máscara. Mas não vai. Mas pode. E assim vai. Se larvária é um ser-por-vir, que pode vir a ser, seu espaço é, também, um mundo grávido de seus primeiros momentos, um lugar de indefinição e potencialidade, de suspensão, de presente sem olhar pro futuro, passado só o imediato, só o da reação, sem história. O ser-larvária é como o espaço-larvária.

A relação que se dá na construção dos espaços ficou para mim como a idéia/ação que acontece em Larvárias, permeando toda a peça. O ser indefinido se constitui pelo simples deslocamento no espaço, espaço este igualmente indefinido. A grande bola branca fica ali como um mundo, como um tudo, algo que pode estourar em possibilidades; e também como um nada, porque nem tudo que é redondo é Terra, nem tudo que é branco está em branco. Este elemento da cena é um grande mistério, mítico e plástico, um signo e artíficio que diz ao mesmo tempo lugar e não-lugar. É não-lugar quando apenas se avizinha dos não-seres, e ganha status de lugar quando aqueles parecem finalmente ganhar uma definição mais clara de ser, ainda que aberta.

A narrativa que se adivinha é a ação que se desenrola não apenas entre aquelas duas criaturas, mas entre elas e um espaço possível. O encontro – definitivo e inaugural - entre elas se dá no mesmo momento em que um espaço é transformado e conquistado. Estas duas ações, no entanto, não são paralelas. São perpendiculares, afinal elas se cruzam. E se cruzam necessariamente.

Bater naquela coisa informe e tão sólida, tão maior, tão firme, fazer a matéria ceder até que haja um espaço outro, até que haja um espaço dentro, até que haja um espaço "isto é meu". Entrar naquela esfera do espaço rasgado na porrada, inventado, feito de avesso. Maior, estender o gesto, chamar o outro... O final da peça me pareceu o encontro fatal entre tempo e espaço: quando um espaço se define ele passa a ter que se configurar também diante da ameaça do tempo, a ameaça da erosão, do envelhecimento, da expansão sem fim, do seu vazio, seu negativo, sua autonomia, de tudo o que não é aquele espaço. É a permanência no tempo que legitima muitos espaços. E a necessidade do outro... quando o espaço se preserva também na memória de outro, é como se houvesse uma cópia autenticada da experiência, uma validação daquela realidade. Um espaço só, por menor que seja, parece enorme se pensado ao longo de um longo tempo. Já um espaço compartilhado, ao longo do tempo, é um espaço justo.

Aqueles quase seres, que estariam em um estágio anterior a uma definição, estão ganhando definição no decorrer dos amores, dos encontros, dos avizinhamentos, dos afetos. Eles se deslocam aleatoriamente, o que não quer dizer que não têm direção. Fatalmente, vão em direção ao outro. Neste movimento, se deslocam violentamente e encontram seu lugar e seu descanso naturais. No outro.

FOUCAULT – "Peut-être pourrait-on dire que certains des conflits idéologiques qui animent les polémiques d'aujourd'hui se déroulent entre les pieux descendants du temps et les habitants acharnés de l'espace."
EU – Ah, você está aí... O que é um habitante obstinado do espaço? É aquele ser que abre um buraco no mundo só pra dividir com alguém?

* * *

Larvárias apareceu aqui só como desculpa. É que esta peça entrou para o meu pequeno museu imaginário do afeto – pura utopia – junto com os altares, quiosques e monumentos do Thomas Hirschhorn, o filme Eu, você e todos nós, da Miranda July, o álbum Alice do Tom Waits, o prólogo do José e seus irmãos do Thomas Mann, Gloucester, personagem do Rei Lear, alguns contos do Raymond Carver, o Wilhelm Meister do Goethe, o ensaio da Susan Sontag sobre Machado de Assis, os finais dos livros do Joyce, Un bar aux Folies-Bergère do Manet, as cartas do Rilke...


Sem fim, este é um espaço de afeto.

Daniele Avila, maio de 2007.