ISTO É MEU
isto é belo
isto é arte
Isto é meu
FANTASMAS: Queremos ser vanguarda/queremos o novo/vamos destruir o velho/teatro é chato/a arte com 'a' maiúsculo é elitista/vamos acabar com isso/vamos fazer um manifesto/a arte morreu/a arte morreu de novo/quem é hegel?/brillo box? O que é brillo box?/vamos demolir tudo, mesmo o que a gente não conhece
OUTROS: E se abríssemos mão dos cânones? E se tentássemos esquecer que eles existem? Por que você quer o lugar do velho? O velho fala muito alto? Você se sente ofuscado? Você não consegue abrir um buraco novo no mundo? Que saco isso de ter que ser novo.
O CANDIDATO A CÂNONE: O "novo" é a nova "aura".
CORO: Os cânones são opressores. Não podemos conviver com eles. Esquece o cânone. Esquece.
MEU: Não dá. Eu amo os cânones. A questão é que eles não podem ficar lá, sentados nas suas poltronas imaginárias. Eles precisam ser perturbados, eles precisam continuar falando, mas podem dizer outras coisas. Então convidamos os cânones a sair das bibliotecas, dos museus, das europas, e trazemos um ou outro pra uma mesa de bar. Vamos embriagar os cânones. Vamos fazer perguntas as mais constrangedoras. Vamos tirar a calcinha do cânone. Não, não precisa tanto, se não for o caso. Vamos só deixar a porta aberta (aquela "porta teórica e que de porta mesmo só tem uma indicação sumária" como diria Nelson Rodrigues). E então você entra no reduto sagrado do cânone. Você está de pé, afinal de contas – dizem – nossos joelhos não se dobram mais. Você passeia entre os nomes nos seus singelos ou suntuosos pedestais. Você olha em volta num estado de dispersão atenta. Você está pescando cânones. Sua isca, uma minhoca qualquer, que é o que você tem, está suspensa por ali. Uma coleção de sensibilidades antigas - ou até novas porém validadas – canta seu canto sedutor. E lá está você, preso no mastro talvez, mas esperando/procurando o seu peixe grande. Alguns nomes parecem olhar para o próprio pedestal com total indiferença. Eles dizem: "você pode me ler se você quiser". Outros praticamente se impõem. É difícil escolher. Você ouve... "me pega"... "me olha"... "me resgata"... "me analisa"... "me desloca"... "me contempla"... "me estuda"... "me copia"... "me tira daqui"... "me ama"... "essa moldura tá me machucando"... "me sublinha"... "me digitaliza"... "me destrói"... "me traduz"... "me compra"... "me come"... hein?
ME COME.
Eu já ouvi isso antes.
Me come. - diz o cânone.
Posso mesmo? - você pergunta.
Você me devora e, assim, me decifra.
Você fica enorme. Depois muito pequena. E às vezes não acontece nada. Nossos joelhos se dobram sim, mas é pra colocar as mãos no chão. Porque elas estão muito limpinhas. E não dá pra pegar no canône com as mãos limpas. Você está de quatro pelo cânone. Você fica de quatro pro cânone. Você e o cânone têm agora uma grande intimidade. Você está comendo o cânone. Aliás, vários.
Eles são amigos, mesmo quando rivais, o diálogo entre eles é intenso e prolixo, cheios de silêncios de Pinter e de discursos de Osborne; de convenções e seus negativos; de jogos e linguagens; solilóquios precisos e limpos, manchados de Beckett e Ensor; internos de família e espaços outros, explodidos, extintos. Nem todos se calam como Joyce nos seus finais. Pactos se estendem do nórdico ao grande sertão do Brasil. Muita Europa. Muita Europa... Faustos todos, pagaram seus preços. Até dar tiro na cabeça um ou outro já deu. "Muito trabalho" eles dizem. "Muito trabalho". Tanto trabalho pra ficar aqui embalsamado, feito múmia. O mofo é o preço da aura?
"Tira minha aura."
E você vai tirando, devagar, a aura do seu cânone. Eu disse: "seu canône". E assim vamos, devorando cânones, mastigando cânones, engolindo e cuspindo cânones. Há quem saiba até mesmo vomitar cânone. Mas passou da minha goela, é meu. Isso ninguém pode negar. Enzimas digestivas são criaturas sem cerimônia. Mas tem também as enzimas cerebrais. Despudoradas enzimas cerebrais. Tradutoras inatas, traidoras também. Devoradoras de esfinges. Mas toda europa tem suas fronteiras. Pois a fala, a escrita... aí são outros quinhentos. A polícia federal da linguagem produtiva é cascuda. Muita censura. Muita censura... O cânone tem passe livre pra entrar pelos olhos, ouvidos, por todos os sentidos tem passaporte de cidadão europeu, mas na hora de botar o cânone pra fora, mastigado, digerido, transformado, "meu", na hora de fazer ele sair pela garganta, pelas mãos que dóem de tanto escrever, pelas pontas dos dedos de unhas curtas pra digitar melhor... aí ele é muçulmano, latino, boliviano nos Estados Unidos, pária. Porque no espaço público a aura se reconfigura imediatamente. Passou o efeito: fiquei pequena de novo.
"Isto é meu" é muito difícil de dizer. Minha isca, minha minhoca qualquer, minha moqueca de peixe grande... se é belo, não sei, se é arte, não sei. Mas se é meu (será que é meu mesmo? Não é uma adaptação? Um plágio? Um pastiche? Tenho que pôr nota de pé de página?) tem que ter seu lugar no mundo. Mas "vale tudo"? "Vale tudo" é uma armadilha pros trouxas. Não vale tudo não, Pedro Bó. Do nada nada vem. E tira o seu nada daqui. O seu "nada" não pode devorar o meu "meu".
Quem pode dizer isto é arte, quem pode dizer isto é belo? Quem se interessa? Talvez seja isso, é quem se interessa que pode dizer "isto é belo", "isto é arte", no seu interesse desinteressado; os inferiores superiores atentos iguais do professor Jacotot. Por puro afeto. Mas dizer com afeto "isto é meu" está muito, mas muito fora de moda mesmo. Experimenta. Diz: Oi. É, você, você mesmo que não me conhece, quero te dar uma coisa, você que me olha e não me vê, presta atenção em mim um instante, você que troca meu nome e some nas altas da madrugada, que nem conhece essa música do Djavan que eu acabei de citar, que está distraído aí, olha pra cá: toma; ISTO É MEU, ISTO É BELO E ISTO É ARTE, é puro afeto, agora é seu. Faz o que você quiser, mas faz alguma coisa: me pega, me olha, me resgata, me analisa, me desloca, me contempla, me estuda, me copia, (me tira daqui), me ama, (essa moldura tá me machucando), me sublinha, me digitaliza, me destrói, me traduz, me compra, me come.
isto é arte
Isto é meu
FANTASMAS: Queremos ser vanguarda/queremos o novo/vamos destruir o velho/teatro é chato/a arte com 'a' maiúsculo é elitista/vamos acabar com isso/vamos fazer um manifesto/a arte morreu/a arte morreu de novo/quem é hegel?/brillo box? O que é brillo box?/vamos demolir tudo, mesmo o que a gente não conhece
OUTROS: E se abríssemos mão dos cânones? E se tentássemos esquecer que eles existem? Por que você quer o lugar do velho? O velho fala muito alto? Você se sente ofuscado? Você não consegue abrir um buraco novo no mundo? Que saco isso de ter que ser novo.
O CANDIDATO A CÂNONE: O "novo" é a nova "aura".
CORO: Os cânones são opressores. Não podemos conviver com eles. Esquece o cânone. Esquece.
MEU: Não dá. Eu amo os cânones. A questão é que eles não podem ficar lá, sentados nas suas poltronas imaginárias. Eles precisam ser perturbados, eles precisam continuar falando, mas podem dizer outras coisas. Então convidamos os cânones a sair das bibliotecas, dos museus, das europas, e trazemos um ou outro pra uma mesa de bar. Vamos embriagar os cânones. Vamos fazer perguntas as mais constrangedoras. Vamos tirar a calcinha do cânone. Não, não precisa tanto, se não for o caso. Vamos só deixar a porta aberta (aquela "porta teórica e que de porta mesmo só tem uma indicação sumária" como diria Nelson Rodrigues). E então você entra no reduto sagrado do cânone. Você está de pé, afinal de contas – dizem – nossos joelhos não se dobram mais. Você passeia entre os nomes nos seus singelos ou suntuosos pedestais. Você olha em volta num estado de dispersão atenta. Você está pescando cânones. Sua isca, uma minhoca qualquer, que é o que você tem, está suspensa por ali. Uma coleção de sensibilidades antigas - ou até novas porém validadas – canta seu canto sedutor. E lá está você, preso no mastro talvez, mas esperando/procurando o seu peixe grande. Alguns nomes parecem olhar para o próprio pedestal com total indiferença. Eles dizem: "você pode me ler se você quiser". Outros praticamente se impõem. É difícil escolher. Você ouve... "me pega"... "me olha"... "me resgata"... "me analisa"... "me desloca"... "me contempla"... "me estuda"... "me copia"... "me tira daqui"... "me ama"... "essa moldura tá me machucando"... "me sublinha"... "me digitaliza"... "me destrói"... "me traduz"... "me compra"... "me come"... hein?
ME COME.
Eu já ouvi isso antes.
Me come. - diz o cânone.
Posso mesmo? - você pergunta.
Você me devora e, assim, me decifra.
Você fica enorme. Depois muito pequena. E às vezes não acontece nada. Nossos joelhos se dobram sim, mas é pra colocar as mãos no chão. Porque elas estão muito limpinhas. E não dá pra pegar no canône com as mãos limpas. Você está de quatro pelo cânone. Você fica de quatro pro cânone. Você e o cânone têm agora uma grande intimidade. Você está comendo o cânone. Aliás, vários.
Eles são amigos, mesmo quando rivais, o diálogo entre eles é intenso e prolixo, cheios de silêncios de Pinter e de discursos de Osborne; de convenções e seus negativos; de jogos e linguagens; solilóquios precisos e limpos, manchados de Beckett e Ensor; internos de família e espaços outros, explodidos, extintos. Nem todos se calam como Joyce nos seus finais. Pactos se estendem do nórdico ao grande sertão do Brasil. Muita Europa. Muita Europa... Faustos todos, pagaram seus preços. Até dar tiro na cabeça um ou outro já deu. "Muito trabalho" eles dizem. "Muito trabalho". Tanto trabalho pra ficar aqui embalsamado, feito múmia. O mofo é o preço da aura?
"Tira minha aura."
E você vai tirando, devagar, a aura do seu cânone. Eu disse: "seu canône". E assim vamos, devorando cânones, mastigando cânones, engolindo e cuspindo cânones. Há quem saiba até mesmo vomitar cânone. Mas passou da minha goela, é meu. Isso ninguém pode negar. Enzimas digestivas são criaturas sem cerimônia. Mas tem também as enzimas cerebrais. Despudoradas enzimas cerebrais. Tradutoras inatas, traidoras também. Devoradoras de esfinges. Mas toda europa tem suas fronteiras. Pois a fala, a escrita... aí são outros quinhentos. A polícia federal da linguagem produtiva é cascuda. Muita censura. Muita censura... O cânone tem passe livre pra entrar pelos olhos, ouvidos, por todos os sentidos tem passaporte de cidadão europeu, mas na hora de botar o cânone pra fora, mastigado, digerido, transformado, "meu", na hora de fazer ele sair pela garganta, pelas mãos que dóem de tanto escrever, pelas pontas dos dedos de unhas curtas pra digitar melhor... aí ele é muçulmano, latino, boliviano nos Estados Unidos, pária. Porque no espaço público a aura se reconfigura imediatamente. Passou o efeito: fiquei pequena de novo.
"Isto é meu" é muito difícil de dizer. Minha isca, minha minhoca qualquer, minha moqueca de peixe grande... se é belo, não sei, se é arte, não sei. Mas se é meu (será que é meu mesmo? Não é uma adaptação? Um plágio? Um pastiche? Tenho que pôr nota de pé de página?) tem que ter seu lugar no mundo. Mas "vale tudo"? "Vale tudo" é uma armadilha pros trouxas. Não vale tudo não, Pedro Bó. Do nada nada vem. E tira o seu nada daqui. O seu "nada" não pode devorar o meu "meu".
Quem pode dizer isto é arte, quem pode dizer isto é belo? Quem se interessa? Talvez seja isso, é quem se interessa que pode dizer "isto é belo", "isto é arte", no seu interesse desinteressado; os inferiores superiores atentos iguais do professor Jacotot. Por puro afeto. Mas dizer com afeto "isto é meu" está muito, mas muito fora de moda mesmo. Experimenta. Diz: Oi. É, você, você mesmo que não me conhece, quero te dar uma coisa, você que me olha e não me vê, presta atenção em mim um instante, você que troca meu nome e some nas altas da madrugada, que nem conhece essa música do Djavan que eu acabei de citar, que está distraído aí, olha pra cá: toma; ISTO É MEU, ISTO É BELO E ISTO É ARTE, é puro afeto, agora é seu. Faz o que você quiser, mas faz alguma coisa: me pega, me olha, me resgata, me analisa, me desloca, me contempla, me estuda, me copia, (me tira daqui), me ama, (essa moldura tá me machucando), me sublinha, me digitaliza, me destrói, me traduz, me compra, me come.
Um beijo,
Daní
26 de maio de 2007