terça-feira, maio 01, 2007

Larvárias - Heterotopia do afeto possível. Ou possível heterotopia do afeto.

Quase sobre Larvárias, mas na verdade não.

O lugar que se constrói
Antes da definição
É o afeto

O teatro é o lugar do espaço possível. Ali, qualquer mundo é, pelo menos, viável. A virtualidade é sua graça. O que é literal, o que já está dado, as grandes verdades, tudo isso parece meio anacrônico no teatro, parece que não devia estar ali. O teatro já é um espaço real; sobrepor outra realidade, impor um mundo dado sobre ele é como aterrar um pedaço de oceano para construir edifícios. Quero dizer: faz-se muito disso, mas desenvolvo uma crescente antipatia por este tipo de procedimento para com os espaços em geral. Roubar a virtualidade do espaço teatral é como calar a natureza de um mar.

É com alívio que me encontro de repente num domingo no Teatro Poeira e mais de repente ainda fora dele, num lugar sem lugar, num universo sugerido a partir das potencialidades daquele chão. Um lugar em que se pode mas não pode entrar, que se deixa estar dentro e fora. Um fatia no tempo, um desvio do tempo real.

EU - Socorro, Foucault! Como você dizia mesmo? Das heterotopias?
FOUCAULT – "Mais ce qui m'intéresse, ce sont, parmi tous ces emplacements, certains d'entre qui ont la curieuse propriété d'être en rapport avec tous les autres emplacements, mais sur un mode tel qu'ils suspendent, neutralisent ou inversent l'ensemble des rapports qui se trouvent, par eux, désignés, reflétés ou réfléchis."
EU - É por aí. Um lugar que pode se relacionar com todos os outros, um lugar de suspensão, de invenção. Você diz que o barco - navio? caravela? - é a heterotopia por excelência. Entendo... Acho um pouco que é porque o barco faz de forma literal, real, o que uma experiência estética faz, a de entrar no mar da coisa mantendo-se suspenso sobre ele. Se o afeto fosse um lugar, seria uma heterotopia. Você não acha? (Silêncio) Tenho pensado muito sobre o afeto, o lugar do afeto no juízo, na arte... (pausa, como se alguém fosse responder) Foucault?... (desistindo da coisa toda) Esquece.

O lugar do afeto é muito real. Parece que não, parece interno, mas não é. O espaço do afeto é externo porque é um espaço de configuração de relações, de tecitura de redes de afinidades, de movimento, de expressão que escapa. O afeto não se basta. Ele é, necessariamente, um vetor, mas um vetor apenas. É um antes, um quase. Ele é a possibilidade de constituição de alguma coisa. As criaturas de Larvárias são, foram, pra mim, seres de afeto. Máscaras de quase seres, ou seres quase alguma coisa. O ser em Larvárias é um quase. Um recorte no tempo de um ser que é um não-tempo-ainda, um tempo de um ser que não o percebe como tal, que não se vê ainda como ser-no-tempo. O afeto também não precisa do tempo, ele dispensa narrativas.

A máscara é sempre uma tensão entre algo que poderia se revelar mas não vai, e que mesmo assim não abandona nunca essa possibilidade. Aquele ator pode, a qualquer momento, tirar a máscara. Mas não vai. Mas pode. E assim vai. Se larvária é um ser-por-vir, que pode vir a ser, seu espaço é, também, um mundo grávido de seus primeiros momentos, um lugar de indefinição e potencialidade, de suspensão, de presente sem olhar pro futuro, passado só o imediato, só o da reação, sem história. O ser-larvária é como o espaço-larvária.

A relação que se dá na construção dos espaços ficou para mim como a idéia/ação que acontece em Larvárias, permeando toda a peça. O ser indefinido se constitui pelo simples deslocamento no espaço, espaço este igualmente indefinido. A grande bola branca fica ali como um mundo, como um tudo, algo que pode estourar em possibilidades; e também como um nada, porque nem tudo que é redondo é Terra, nem tudo que é branco está em branco. Este elemento da cena é um grande mistério, mítico e plástico, um signo e artíficio que diz ao mesmo tempo lugar e não-lugar. É não-lugar quando apenas se avizinha dos não-seres, e ganha status de lugar quando aqueles parecem finalmente ganhar uma definição mais clara de ser, ainda que aberta.

A narrativa que se adivinha é a ação que se desenrola não apenas entre aquelas duas criaturas, mas entre elas e um espaço possível. O encontro – definitivo e inaugural - entre elas se dá no mesmo momento em que um espaço é transformado e conquistado. Estas duas ações, no entanto, não são paralelas. São perpendiculares, afinal elas se cruzam. E se cruzam necessariamente.

Bater naquela coisa informe e tão sólida, tão maior, tão firme, fazer a matéria ceder até que haja um espaço outro, até que haja um espaço dentro, até que haja um espaço "isto é meu". Entrar naquela esfera do espaço rasgado na porrada, inventado, feito de avesso. Maior, estender o gesto, chamar o outro... O final da peça me pareceu o encontro fatal entre tempo e espaço: quando um espaço se define ele passa a ter que se configurar também diante da ameaça do tempo, a ameaça da erosão, do envelhecimento, da expansão sem fim, do seu vazio, seu negativo, sua autonomia, de tudo o que não é aquele espaço. É a permanência no tempo que legitima muitos espaços. E a necessidade do outro... quando o espaço se preserva também na memória de outro, é como se houvesse uma cópia autenticada da experiência, uma validação daquela realidade. Um espaço só, por menor que seja, parece enorme se pensado ao longo de um longo tempo. Já um espaço compartilhado, ao longo do tempo, é um espaço justo.

Aqueles quase seres, que estariam em um estágio anterior a uma definição, estão ganhando definição no decorrer dos amores, dos encontros, dos avizinhamentos, dos afetos. Eles se deslocam aleatoriamente, o que não quer dizer que não têm direção. Fatalmente, vão em direção ao outro. Neste movimento, se deslocam violentamente e encontram seu lugar e seu descanso naturais. No outro.

FOUCAULT – "Peut-être pourrait-on dire que certains des conflits idéologiques qui animent les polémiques d'aujourd'hui se déroulent entre les pieux descendants du temps et les habitants acharnés de l'espace."
EU – Ah, você está aí... O que é um habitante obstinado do espaço? É aquele ser que abre um buraco no mundo só pra dividir com alguém?

* * *

Larvárias apareceu aqui só como desculpa. É que esta peça entrou para o meu pequeno museu imaginário do afeto – pura utopia – junto com os altares, quiosques e monumentos do Thomas Hirschhorn, o filme Eu, você e todos nós, da Miranda July, o álbum Alice do Tom Waits, o prólogo do José e seus irmãos do Thomas Mann, Gloucester, personagem do Rei Lear, alguns contos do Raymond Carver, o Wilhelm Meister do Goethe, o ensaio da Susan Sontag sobre Machado de Assis, os finais dos livros do Joyce, Un bar aux Folies-Bergère do Manet, as cartas do Rilke...


Sem fim, este é um espaço de afeto.

Daniele Avila, maio de 2007.

4 Comments:

Blogger Daniele Avila said...

estranho esse texto, né? foi mal...

terça-feira, maio 01, 2007  
Blogger Walmir said...

Espaços são mesmo coisas estranhas, tempo ainda mais estranho, incógnito. O que se sabe dele? Só o que sabemos é cronologia, mas não a matéria tempo, só este presente do passado impossível de ser vivido.
Paz e bem

quinta-feira, setembro 20, 2007  
Blogger Unknown said...

Olá Daniela, gostaria de saber se tu tens algum endereço onde eu possa conseguir o ensaio de Sontag sobre Machado de Assis.

Obrigado pela atenção!!

quinta-feira, fevereiro 19, 2009  
Blogger Daniele Avila said...

Oi, Catharino
Esse ensaio tá no Questão de ênfase, não?
Não acho que tenha disponível online.
Bjs

quinta-feira, fevereiro 19, 2009  

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