O animal do tempo
(uma versão mais elaborada está publicada na Bacante)
O texto é o protagonista mesmo, neste caso. Nem sempre é, naturalmente, apesar de ouvirmos muito que determinado trabalho (direção, cenografia, etc) serve – bem ou mal – ao texto. Há muito tempo as coisas não são mais assim... Mas continuam sendo. Neste caso, o que tem de especial em cena é o texto sim, o que não significa que as coisas devem servir a esta entidade suprema. Pelo contrário, este texto é que parece reivindicar servir a alguma coisa, ele parece reivindicar uma atitude, ele mesmo parece querer servir o teatro de uma outra cena. Ele tenta. Ele propõe, entre outras coisas, que o lugar da cena, agora, é a boca (oi, Beckett); a boca que se abre para o interior da caixa craniana, a boca que tem língua que produz linguagem, tudo em parceria com o cérebro. A língua e o cérebro resolvem se debruçar um sobre o outro. A boca é o lugar do pensamento. O pensamento come a língua, mastiga as palavras. Podemos pensar até que já que o nosso aparelho fonador não serve exclusivamente para a fala, e que na verdade, o que a boca faz de mais "importante" é comer, podemos pensar que o que o texto do Novarina faz, em vez de falar, é devorar a cena. O mais que centenário fluxo de consciência está fazendo o quê em cena?
Pois é. Acho que ele tem muito que fazer em cena. Mas acho que neste caso, desta montagem, não faz tanto. Ele propõe vários elementos, entre eles: uma dose de abstração, certa comicidade, um ritmo próprio, um esvaziamento, um tempo diferente que com certeza demanda um espaço diferente. No primeiro momento da peça, um grande prazer: um espaço diferente. Estamos sentados numa sala (de projeção – acima de nossas cabeças há um projetor e a sala tem as paredes pintadas de preto) e, diante de nós, nenhuma tela real, nem parede; vemos um espaço de transição: um degrau de elevação forma uma espécie de pequeno tablado, menor que a sala da platéia, ladeado por paredes que o estreitam e o teto rebaixado, que dão uma impressão interessante de perspectiva (que se inverte) porque, depois deste espaço mais estreito, abre-se uma sala bem maior, com o (longo) chão coberto de papéis e, no fundo, a atriz num banquinho, lá longe. Achei muito interessante esta distância, logo pensei que seria um ótimo desafio fazer a peça assim, sem que o espectador conseguisse discernir com precisão o olhar da atriz, afinal, o olho no olho entre ator/espectador é o clichê preferido do monólogo. Não deu outra. Pouquíssimos minutos de peça e ela já tinha deixado a distância pra trás e estava aqui, na beirada do pequeno palco, falando olho no olho com a platéia. E assim vai, a peça toda. O próprio texto já tem um vetor: da boca do ator ao ouvido da platéia. Não vejo encanto em sublinhar isso com olhos e gestos. E não se trata de "quarta parede", já está dado que não tem parede, mas tem algo de anacrônico na forma escolhida: o conteúdo desconstrói a linguagem, mas a forma tenta reparar isto o tempo todo. No texto, um eu que é diverso, que brinca de existir e não existir, que joga com a sua definição, que manipula palavras como se estas fossem objetos virtuais; no corpo, uma postura declamatória, um gestual que explica o que não tem explicação, uma dicção que sublinha e parece tentar salvar o que se "perde" com a desconstrução da língua. Eu sabia que ia ouvir um jogo diferente do comum, mas esperava ver isso também. E tudo que era visível em cena parecia tentar compensar o que era desdito. Tem discurso demais para um (não)discurso, tem rosto demais para um (não)personagem. Fiquei surpresa ao pensar que a montagem estava indo na direção contrária do que eu pensava que o texto permitia. Passei a peça toda tentando ver de outro modo, tentando catar uma consonância. Achei algumas, naturalmente.
A música é sempre um dado de abstração. O instrumento musical é um objeto que fala uma língua que nem dos objetos é. Achei bonito que o interlocutor dela pudesse ser um objeto que não fala a mesma língua. Ele não chega a ser um interlocutor, é quase só um eco, quase também uma bengala. Mas quando ela apenas fecha o acordeom, sem que este faça música, ele emite um sopro, um vazio sonoro cheio de significados possíveis. Fica bem bonito. O apoio para partitura (não sei o nome) – também vazio - é ótimo, no entanto, o vazio ganharia mais força se ela olhasse para ele, permitindo que esta ausência apresentasse a sua presença. Por falar em eco, é interessante quando ela faz a voz de um eco e o som vai sumindo enquanto o movimento continua. Fiquei esperando mais brincadeiras dessas com o som, o vazio, a embocadura. A comicidade também acontece, geralmente quando o texto vira letra de música, talvez porque, nestes momentos, a montagem abre mão de tentar cavar uma narrativa onde ela não existe. O jogo aparece nestas horas. (No dia em que eu assisti, tinha uma atriz-amiga-da-atriz rindo muito alto na platéia, o que tirou um pouco a graça da coisa toda.) O esvaziamento fica comprometido por uma preocupação excessiva em se fazer entender quando entender não é o caso; e quanto ao ritmo e um possível tempo diferente, achei estranho. Achei que o tempo de tudo era um tempo muito normal, um tempo de contar uma história. A cadência do espetáculo nega um pouco o fluxo do texto. Mas pode ser só impressão. Eu veria de novo. Veria de novo com prazer.
De qualquer modo, é bem raro poder presenciar no teatro carioca alguém que se arrisque com um texto contemporâneo, com leituras contemporâneas ou com a própria cena contemporânea. Pena que não haja muita convergência entre estas três coisas. A gente fica sempre com um pé (às vezes dois) em algum lugar do passado. Normal, eu acho.
Daniele Avila, julho de 2007.
Pois é. Acho que ele tem muito que fazer em cena. Mas acho que neste caso, desta montagem, não faz tanto. Ele propõe vários elementos, entre eles: uma dose de abstração, certa comicidade, um ritmo próprio, um esvaziamento, um tempo diferente que com certeza demanda um espaço diferente. No primeiro momento da peça, um grande prazer: um espaço diferente. Estamos sentados numa sala (de projeção – acima de nossas cabeças há um projetor e a sala tem as paredes pintadas de preto) e, diante de nós, nenhuma tela real, nem parede; vemos um espaço de transição: um degrau de elevação forma uma espécie de pequeno tablado, menor que a sala da platéia, ladeado por paredes que o estreitam e o teto rebaixado, que dão uma impressão interessante de perspectiva (que se inverte) porque, depois deste espaço mais estreito, abre-se uma sala bem maior, com o (longo) chão coberto de papéis e, no fundo, a atriz num banquinho, lá longe. Achei muito interessante esta distância, logo pensei que seria um ótimo desafio fazer a peça assim, sem que o espectador conseguisse discernir com precisão o olhar da atriz, afinal, o olho no olho entre ator/espectador é o clichê preferido do monólogo. Não deu outra. Pouquíssimos minutos de peça e ela já tinha deixado a distância pra trás e estava aqui, na beirada do pequeno palco, falando olho no olho com a platéia. E assim vai, a peça toda. O próprio texto já tem um vetor: da boca do ator ao ouvido da platéia. Não vejo encanto em sublinhar isso com olhos e gestos. E não se trata de "quarta parede", já está dado que não tem parede, mas tem algo de anacrônico na forma escolhida: o conteúdo desconstrói a linguagem, mas a forma tenta reparar isto o tempo todo. No texto, um eu que é diverso, que brinca de existir e não existir, que joga com a sua definição, que manipula palavras como se estas fossem objetos virtuais; no corpo, uma postura declamatória, um gestual que explica o que não tem explicação, uma dicção que sublinha e parece tentar salvar o que se "perde" com a desconstrução da língua. Eu sabia que ia ouvir um jogo diferente do comum, mas esperava ver isso também. E tudo que era visível em cena parecia tentar compensar o que era desdito. Tem discurso demais para um (não)discurso, tem rosto demais para um (não)personagem. Fiquei surpresa ao pensar que a montagem estava indo na direção contrária do que eu pensava que o texto permitia. Passei a peça toda tentando ver de outro modo, tentando catar uma consonância. Achei algumas, naturalmente.
A música é sempre um dado de abstração. O instrumento musical é um objeto que fala uma língua que nem dos objetos é. Achei bonito que o interlocutor dela pudesse ser um objeto que não fala a mesma língua. Ele não chega a ser um interlocutor, é quase só um eco, quase também uma bengala. Mas quando ela apenas fecha o acordeom, sem que este faça música, ele emite um sopro, um vazio sonoro cheio de significados possíveis. Fica bem bonito. O apoio para partitura (não sei o nome) – também vazio - é ótimo, no entanto, o vazio ganharia mais força se ela olhasse para ele, permitindo que esta ausência apresentasse a sua presença. Por falar em eco, é interessante quando ela faz a voz de um eco e o som vai sumindo enquanto o movimento continua. Fiquei esperando mais brincadeiras dessas com o som, o vazio, a embocadura. A comicidade também acontece, geralmente quando o texto vira letra de música, talvez porque, nestes momentos, a montagem abre mão de tentar cavar uma narrativa onde ela não existe. O jogo aparece nestas horas. (No dia em que eu assisti, tinha uma atriz-amiga-da-atriz rindo muito alto na platéia, o que tirou um pouco a graça da coisa toda.) O esvaziamento fica comprometido por uma preocupação excessiva em se fazer entender quando entender não é o caso; e quanto ao ritmo e um possível tempo diferente, achei estranho. Achei que o tempo de tudo era um tempo muito normal, um tempo de contar uma história. A cadência do espetáculo nega um pouco o fluxo do texto. Mas pode ser só impressão. Eu veria de novo. Veria de novo com prazer.
De qualquer modo, é bem raro poder presenciar no teatro carioca alguém que se arrisque com um texto contemporâneo, com leituras contemporâneas ou com a própria cena contemporânea. Pena que não haja muita convergência entre estas três coisas. A gente fica sempre com um pé (às vezes dois) em algum lugar do passado. Normal, eu acho.
Daniele Avila, julho de 2007.