Mangiare: imaginação e trabalho
Mangiare está em cartaz na Fundição Progresso, no espaço do Teatro de Anônimo, sextas e sábados às 20h até 18 de agosto. Com Ana Paula Secco, Georgiana Góes e Marina Bezze. Direção de Fabianna de Mello e Souza. Direção musical e músicas originas de Leandro Castilho. Massa do nhoque de Dona Ione e corte dos legumes de Geni.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o estranho fato de que tinha gente normal na platéia. Apesar de não estarmos no Shopping da Gávea ou no Teatro do Leblon e, ainda por cima, estarmos na Fundição Progresso, não era a classe artística que enchia o espaço. Fica o recado pra quem reclama que só a classe vai ao teatro: é só fazer coisa boa que as pessoas vêem. Ao longo da peça, os comentários na minha mesa tinham um frescor similar ao que vinha da cena e o ambiente acolhedor ganhava um calor especial do vinho e dos refletores.
O espetáculo derruba uma série de clichês. O primeiro deles seria o de que a platéia tem que participar ativamente da cena. Acho que em todas as peças que eu vi essa tentativa, era quase sempre com um tom de mau gosto ou agressividade. O clichê faz parte daquele mito de que ficar sentado assistindo é uma coisa menor e que, pra garantir que está participando, a pessoa tem que se sacudir de alguma forma. O que se oferece ao público neste caso coloca do avesso o padrão de participação da platéia. A cena oferece diversas possibilidades de desvio, de distração do foco, até porque não existe um único foco. Eu fiquei como uma barata tonta no meu banquinho e não me senti constrangida de virar as costas para me servir, assim como as pessoas à minha volta não deixavam de fazer comentários enquanto os atores falavam. Silêncio na platéia? Só quando tava todo o mundo comendo, e nem assim. Estes desvios eram formas outras de atenção e tudo lembrava que estar presente já é fazer parte do negócio. Desta forma, a platéia tem uma participação bem ativa e acaba interagindo entre si, só que de uma forma diametralmente oposta ao mais comum: não prestar toda a atenção na cena é dedicar toda a atenção ao acontecimento que é a peça.
Tem um texto (palestra) da Anne Marie Gagnebin sobre Benjamim e Adorno no livro Theoria Aesthetica, da editora Escritos, que fala sobre 'atenção' e 'dispersão'. Ela diz o seguinte:
Num primeiro momento, entendo por 'atenção' e 'dispersão' um duplo movimento do sujeito em relação ao mundo: movimento de concentração, de recolhimento, de tensão/atenção, de cuidado – e movimento de entrega, de distração, de diversão, de disseminação. Na tradição filosófica clássica, ambos os movimentos acompanham as definições clássicas das atividades do lembrar e do esquecer. O lembrar é descrito com um retesamento psíquico, um esforço de recolhimento das imagens dispersas, recolhimento e interiorização espirituais (...). O esquecer, pelo contrário, remete a um afrouxamento da tensão intelectual, mero relaxamento despreocupado ou, numa aproximação mais diferenciada como a de Nietzsche, desistência feliz do espírito inquieto e entrega sábia ao fluxo de uma vida maior que ele.
O espetáculo dá um bom exemplo de como é possível estar atento e disperso ao mesmo tempo, de que a experiência estética não se dá apenas num estado de recolhimento e concentração extra-cotidianos, mas acontece igualmente no fluxo da distração. Aqui nos desviamos para falar de outro clichê desmascarado: o de que teatro sério é chato. Teatro sério, pra mim, é teatro feito com seriedade. Mangiare é fruto de um processo de pesquisa, tanto temática quanto formal. Os exercícios de linguagem trabalhados para a cena revelam maturidade e generosidade e em nenhum momento deslizam para questões autocentradas: a técnica é parte da receita, é mais um ingrediente, não é o protagonista em cima da mesa. Seriedade e comicidade andam juntas aqui; assim como discernimento e leveza, o que pode ser exemplificado pela cena com as projeções, que dá seu recado sem cair no panfletário ou sensacionalista. Acho que li em algum lugar que as projeções eram desnecessárias. Desde quando necessidade é critério? E mesmo se fosse, eu discordaria, pois pode ser de fato necessário abordar um assunto falando também de seu avesso. O juízo que se faz disso fica a critério de cada um. Mostrar o negativo pode ou não mudar algum mundo ou só deslocar o olhar por um instante. Qualquer alternativa é válida. Mas validade também não é critério, então vamos mudar de assunto.
Falando agora de tudo um pouco...
A música ultrapassa a sua função corriqueira em espetáculos com música ao vivo. Música ao vivo?! Não, não se apavore, não é um musical. É teatro mesmo, não é um Frankenstein de números musicais com teatro para a terceira idade. Nada contra, mas não vamos nos confundir. A música em Mangiare é um elemento da organização dramatúrgica da cena, como se fosse uma quarta atriz que participa dos diálogos de igual pra igual com as outras três. O xilofone de garrafas (isso tem um nome?) é especialmente interessante, assim como o batuque de prato e colheres. Podia ser clichê mas não é, porque não há uma espetacularização disso. Os músicos ficam discretos no seu canto, trabalhando na sonoridade dos instrumentos, sem se preocupar em dar um show à parte. E assim o fazem.
As atrizes são referência de que fazer um trabalho pessoal é meio caminho andado pra ter um trabalho sólido. Fica nítido o diferencial do trabalho num grupo (que não é uma companhia de diretor) do trabalho que vemos de atrizes e atores que andam pulando de teste em teste, de curso em curso, sem pensar em construir sua própria praia. Sim, eu repito várias vezes a palavra trabalho, porque fazer isso demanda muito trabalho. Imaginação e trabalho, igual a tudo na vida.
Como o cenário é muito útil e acaba servindo mesmo à peça, coisa que eu odiaria dizer se não fizesse um sentido especial aqui, vou escolher um elemento que o resume – os lustres de colheres descartáveis. Eles reúnem todas as propriedades do conjunto do espetáculo: a feitura artesanal, o carinho pelos detalhes, a beleza na simplicidade, o mergulho no tema, o toque pessoal de cada um e, por fim, a disponibilidade para buscar soluções que se dão ao luxo de prescindir de qualquer traço de ostentação.
E os vegetarianos podem ficar tranqüilos quanto à comida: não tem gente dentro.
Daniele Avila, 12 de agosto de 2007
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o estranho fato de que tinha gente normal na platéia. Apesar de não estarmos no Shopping da Gávea ou no Teatro do Leblon e, ainda por cima, estarmos na Fundição Progresso, não era a classe artística que enchia o espaço. Fica o recado pra quem reclama que só a classe vai ao teatro: é só fazer coisa boa que as pessoas vêem. Ao longo da peça, os comentários na minha mesa tinham um frescor similar ao que vinha da cena e o ambiente acolhedor ganhava um calor especial do vinho e dos refletores.
O espetáculo derruba uma série de clichês. O primeiro deles seria o de que a platéia tem que participar ativamente da cena. Acho que em todas as peças que eu vi essa tentativa, era quase sempre com um tom de mau gosto ou agressividade. O clichê faz parte daquele mito de que ficar sentado assistindo é uma coisa menor e que, pra garantir que está participando, a pessoa tem que se sacudir de alguma forma. O que se oferece ao público neste caso coloca do avesso o padrão de participação da platéia. A cena oferece diversas possibilidades de desvio, de distração do foco, até porque não existe um único foco. Eu fiquei como uma barata tonta no meu banquinho e não me senti constrangida de virar as costas para me servir, assim como as pessoas à minha volta não deixavam de fazer comentários enquanto os atores falavam. Silêncio na platéia? Só quando tava todo o mundo comendo, e nem assim. Estes desvios eram formas outras de atenção e tudo lembrava que estar presente já é fazer parte do negócio. Desta forma, a platéia tem uma participação bem ativa e acaba interagindo entre si, só que de uma forma diametralmente oposta ao mais comum: não prestar toda a atenção na cena é dedicar toda a atenção ao acontecimento que é a peça.
Tem um texto (palestra) da Anne Marie Gagnebin sobre Benjamim e Adorno no livro Theoria Aesthetica, da editora Escritos, que fala sobre 'atenção' e 'dispersão'. Ela diz o seguinte:
Num primeiro momento, entendo por 'atenção' e 'dispersão' um duplo movimento do sujeito em relação ao mundo: movimento de concentração, de recolhimento, de tensão/atenção, de cuidado – e movimento de entrega, de distração, de diversão, de disseminação. Na tradição filosófica clássica, ambos os movimentos acompanham as definições clássicas das atividades do lembrar e do esquecer. O lembrar é descrito com um retesamento psíquico, um esforço de recolhimento das imagens dispersas, recolhimento e interiorização espirituais (...). O esquecer, pelo contrário, remete a um afrouxamento da tensão intelectual, mero relaxamento despreocupado ou, numa aproximação mais diferenciada como a de Nietzsche, desistência feliz do espírito inquieto e entrega sábia ao fluxo de uma vida maior que ele.
O espetáculo dá um bom exemplo de como é possível estar atento e disperso ao mesmo tempo, de que a experiência estética não se dá apenas num estado de recolhimento e concentração extra-cotidianos, mas acontece igualmente no fluxo da distração. Aqui nos desviamos para falar de outro clichê desmascarado: o de que teatro sério é chato. Teatro sério, pra mim, é teatro feito com seriedade. Mangiare é fruto de um processo de pesquisa, tanto temática quanto formal. Os exercícios de linguagem trabalhados para a cena revelam maturidade e generosidade e em nenhum momento deslizam para questões autocentradas: a técnica é parte da receita, é mais um ingrediente, não é o protagonista em cima da mesa. Seriedade e comicidade andam juntas aqui; assim como discernimento e leveza, o que pode ser exemplificado pela cena com as projeções, que dá seu recado sem cair no panfletário ou sensacionalista. Acho que li em algum lugar que as projeções eram desnecessárias. Desde quando necessidade é critério? E mesmo se fosse, eu discordaria, pois pode ser de fato necessário abordar um assunto falando também de seu avesso. O juízo que se faz disso fica a critério de cada um. Mostrar o negativo pode ou não mudar algum mundo ou só deslocar o olhar por um instante. Qualquer alternativa é válida. Mas validade também não é critério, então vamos mudar de assunto.
Falando agora de tudo um pouco...
A música ultrapassa a sua função corriqueira em espetáculos com música ao vivo. Música ao vivo?! Não, não se apavore, não é um musical. É teatro mesmo, não é um Frankenstein de números musicais com teatro para a terceira idade. Nada contra, mas não vamos nos confundir. A música em Mangiare é um elemento da organização dramatúrgica da cena, como se fosse uma quarta atriz que participa dos diálogos de igual pra igual com as outras três. O xilofone de garrafas (isso tem um nome?) é especialmente interessante, assim como o batuque de prato e colheres. Podia ser clichê mas não é, porque não há uma espetacularização disso. Os músicos ficam discretos no seu canto, trabalhando na sonoridade dos instrumentos, sem se preocupar em dar um show à parte. E assim o fazem.
As atrizes são referência de que fazer um trabalho pessoal é meio caminho andado pra ter um trabalho sólido. Fica nítido o diferencial do trabalho num grupo (que não é uma companhia de diretor) do trabalho que vemos de atrizes e atores que andam pulando de teste em teste, de curso em curso, sem pensar em construir sua própria praia. Sim, eu repito várias vezes a palavra trabalho, porque fazer isso demanda muito trabalho. Imaginação e trabalho, igual a tudo na vida.
Como o cenário é muito útil e acaba servindo mesmo à peça, coisa que eu odiaria dizer se não fizesse um sentido especial aqui, vou escolher um elemento que o resume – os lustres de colheres descartáveis. Eles reúnem todas as propriedades do conjunto do espetáculo: a feitura artesanal, o carinho pelos detalhes, a beleza na simplicidade, o mergulho no tema, o toque pessoal de cada um e, por fim, a disponibilidade para buscar soluções que se dão ao luxo de prescindir de qualquer traço de ostentação.
E os vegetarianos podem ficar tranqüilos quanto à comida: não tem gente dentro.
Daniele Avila, 12 de agosto de 2007