Glass (Crítica de vidro)
(Glass fez parte da programação do riocenacontemporanea e está em cartaz no Oi Futuro até 02 de dezembro. Direção, cenografia e dramaturgia de Haroldo Rego; criação e pesquisa de Tavinho Teixeira; criação e interpretação de Gisele Fróes, Luciana Fróes, Daniele do Rosário e Ângela Câmara.)
"Conheço todo o universo sem sair de minha casa." A frase de Lao Tzu está na primeira página do programa da peça. Vem desacompanhada de outras palavras, de outras assinaturas. Nas páginas seguintes, as imagens de um homem diante de um cubo gigante. O cubo, a princípio grande e fechado, vai se reduzindo na medida em que se aproxima do homem: o contrário do que aconteceria com qualquer imagem. Ele se abre para conter o homem. Muitas páginas da história que estas imagens contam no programa mostram apenas o cubo, visto de vários ângulos. Sabemos que ali dentro tem um homem, que se revela e se reconstitui. Só não sabemos a natureza deste dentro. É esta também uma das possíveis questões de Glass.
Que espécie de universo cabe neste dentro, ou melhor, que conhecimento é este que dá conta de todo um universo a partir de um dentro? A própria natureza do vidro talvez seja uma chave – a dinâmica entre sua solidez e sua transparência colocam em dialética as noções de dentro e fora. A fisicalidade do vidro (sua superfície ardilosa) forma um lugar de impressão cheio de possibilidades.
É inevitável pensar em Box, Cube, Empty, Clear, Glass de Joseph Kosuth e nos cubos de Tony Smith. (Estive lendo Didi-Huberman e agora tudo me faz pensar nos cubos de Tony Smith, de maneira até muito chata.) Me arrisco aqui a falar de coisas que não domino: não se trata de namedropping, mas de uma vontade real de olhar com atenção pra essas coisas que escapam ao meu entendimento mais imediato. Vejo que Glass, a peça de Haroldo Rego, está intimamente ligada à peça de J. Kosuth e que também não se trata de mera citação. (E esta pode ser uma associação só minha, afinal, no texto de apresentação da peça no site do Oi futuro, só se fala de Tchekhov e Proust....)
Acho que o jogo está justamente no dentro. É como se o Haroldo Rego tivesse resolvido dar continuidade à série, tivesse se apoderado desta autoria e agora colocasse ali o seu próprio desenho, suas próprias formas (bastante geométricas) do lado de dentro. Um atravessamento, um cruzamento. Ele quebra o vidro? Ele quebra o vidro com o olhar? Que tipo de cisão acontece ali? Diante do cubo, em especial um cubo transparente, vejo seus limites, uma matéria forte que divide o espaço com suas linhas, ângulos e planaridades combinadas. A geometria está em cena no seu esforço de dar conta de dentros abstratos, traçar limites num espaço inteligível. No lado de dentro, a presença de três mulheres. No lado de fora, a presença de uma voz, também feminina. No entre, superfícies que rebatem qualquer tautologia: o vidro é sempre outra coisa além dele mesmo. A voz que vem de fora, nos headphones presos às nossas cabeças, provoca um desalinhamento incessante entre som e imagem, entre tempo e espaço. O trabalho pra tornar tudo coerente, pra identificar gestos e frases, pra "entender" o que o texto diz ou o que as atrizes fazem é uma armadilha inviável. Nem é possível cair nela: qualquer tentativa de linearidade nos lança pra fora do jogo; as pistas são sinais de desvio e todas as linhas são curvas.
Mas não se pode dizer que não há conflito: a geometria e o informe estão soltando faíscas. A audição e a visão também não se conformam com a presença e a atividade simultâneas, assim como a voz e a música também convivem ali de uma maneira estranha.
O triângulo deve ser a figura geométrica mais comum para o teatro dramático. O drama se faz com a tensão e o suspense do número três. Até hoje, muita, muita gente ainda vai ao teatro esperando ver uma intriga. Se não tiver isso, dizem que é chato, longo ou – o pior de tudo – dizem "não entendi." Acho que algo parecido ainda acontece com as artes visuais. Pra muita, muita gente o formato do quadro é a forma validada de "arte". O quadrilátero permite que a visão dê conta de alguma totalidade (isso se não ultrapassar muito a nossa estatura). Já o cubo... o cubo é um problema pra visão humana... Não dar conta de olhar todos os lados ao mesmo tempo é uma crise. Pior ainda, é não dar conta de ver o dentro. É melhor pensar que não tem nada dentro. Mas esta é uma atitude muito preguiçosa. Dá trabalho olhar para o dentro. É isso o que faz Glass: nos convida a olhar para o dentro de algo que não está exatamente dado. Temos um cubo transparente com três mulheres dentro. Fora, duas platéias, uma de frente pra outra com o cubo no meio. Vê se de tudo: todos os lados (até o chão é translúcido e permite discernir a luz de cada refletor), por dentro e por fora, vemos até a platéia que fica do outro lado, tudo iluminado. Vemos um fantasma do triângulo do drama, cercado de superfícies quadradas (ou retangulares) por todos os lados. Vemos uma superposição de visualidades, vemos uma possível peça de teatro dentro de uma possível obra de arte. Ouvimos um texto mas não o vemos. Vemos uma cena mas não a ouvimos, nem quando elas gritam.
De qualquer forma, o encubamento do feminino é um experimento grave. Não dá pra explicar o que acontece ali. Por mais que se esgarce um triângulo, por mais que aquelas três mulheres se dilacerem, a soma de seus ângulos será sempre de 180° (tem alguma coisa que é sempre teatro), o espaço que elas ocupam é sempre dentro dos limites do vidro. Mas são limites de vidro. O vidro é forte e frágil, sustenta mas sempre parece que pode se romper; contém e revela. A natureza do vidro promete um corte. Estes são uns dos meus: É o dentro do cubo que é difícil de entender? São as nossas formas de percepção que não foram feitas pra dar conta das coisas? Qual é a natureza dos meus limites de visão? Meu universo é de vidro? O universo feminino é de vidro? Se fosse uma peça com três homens angustiados dentro de um cubo, ele seria de aço inoxidável?
O dentro de Glass é o dentro de cada um. Além de jogar com os nossos sentidos (tanto os sentidos da percepção quanto os sentidos que atribuímos às coisas), Glass coloca em questão o velho paradigma de que o teatro é uma experiência coletiva – que por mais velho que seja, ainda está por aí. Os headphones apenas sublinham isso. A abstração ali presente faz a recepção ser muito pessoal e evidencia o quanto toda recepção é muito pessoal. (Parece lugar-comum mas, no panorama atual do teatro carioca, é exceção.) O esforço de reunir, enquadrar, definir e explicar o conteúdo de um trabalho de arte é de vidro. Estamos ali sentados – cada um no seu cubo de vidro – e nossa experiência também tem uma superfície, um encubamento, um limite, uma transparência, uma dimensão, uma estatura, uma mediação, um dentro e um fora. E não há imagem de coletivo que dê conta da experiência de cada um. Não há voz feminina que dê conta de três mulheres ao mesmo tempo. Não há nada do lado de fora que defina o lado de dentro; e em vez de pensar que não há nada do lado de dentro, talvez não haja nada do lado de fora.
Que espécie de universo cabe neste dentro, ou melhor, que conhecimento é este que dá conta de todo um universo a partir de um dentro? A própria natureza do vidro talvez seja uma chave – a dinâmica entre sua solidez e sua transparência colocam em dialética as noções de dentro e fora. A fisicalidade do vidro (sua superfície ardilosa) forma um lugar de impressão cheio de possibilidades.
É inevitável pensar em Box, Cube, Empty, Clear, Glass de Joseph Kosuth e nos cubos de Tony Smith. (Estive lendo Didi-Huberman e agora tudo me faz pensar nos cubos de Tony Smith, de maneira até muito chata.) Me arrisco aqui a falar de coisas que não domino: não se trata de namedropping, mas de uma vontade real de olhar com atenção pra essas coisas que escapam ao meu entendimento mais imediato. Vejo que Glass, a peça de Haroldo Rego, está intimamente ligada à peça de J. Kosuth e que também não se trata de mera citação. (E esta pode ser uma associação só minha, afinal, no texto de apresentação da peça no site do Oi futuro, só se fala de Tchekhov e Proust....)
Acho que o jogo está justamente no dentro. É como se o Haroldo Rego tivesse resolvido dar continuidade à série, tivesse se apoderado desta autoria e agora colocasse ali o seu próprio desenho, suas próprias formas (bastante geométricas) do lado de dentro. Um atravessamento, um cruzamento. Ele quebra o vidro? Ele quebra o vidro com o olhar? Que tipo de cisão acontece ali? Diante do cubo, em especial um cubo transparente, vejo seus limites, uma matéria forte que divide o espaço com suas linhas, ângulos e planaridades combinadas. A geometria está em cena no seu esforço de dar conta de dentros abstratos, traçar limites num espaço inteligível. No lado de dentro, a presença de três mulheres. No lado de fora, a presença de uma voz, também feminina. No entre, superfícies que rebatem qualquer tautologia: o vidro é sempre outra coisa além dele mesmo. A voz que vem de fora, nos headphones presos às nossas cabeças, provoca um desalinhamento incessante entre som e imagem, entre tempo e espaço. O trabalho pra tornar tudo coerente, pra identificar gestos e frases, pra "entender" o que o texto diz ou o que as atrizes fazem é uma armadilha inviável. Nem é possível cair nela: qualquer tentativa de linearidade nos lança pra fora do jogo; as pistas são sinais de desvio e todas as linhas são curvas.
Mas não se pode dizer que não há conflito: a geometria e o informe estão soltando faíscas. A audição e a visão também não se conformam com a presença e a atividade simultâneas, assim como a voz e a música também convivem ali de uma maneira estranha.
O triângulo deve ser a figura geométrica mais comum para o teatro dramático. O drama se faz com a tensão e o suspense do número três. Até hoje, muita, muita gente ainda vai ao teatro esperando ver uma intriga. Se não tiver isso, dizem que é chato, longo ou – o pior de tudo – dizem "não entendi." Acho que algo parecido ainda acontece com as artes visuais. Pra muita, muita gente o formato do quadro é a forma validada de "arte". O quadrilátero permite que a visão dê conta de alguma totalidade (isso se não ultrapassar muito a nossa estatura). Já o cubo... o cubo é um problema pra visão humana... Não dar conta de olhar todos os lados ao mesmo tempo é uma crise. Pior ainda, é não dar conta de ver o dentro. É melhor pensar que não tem nada dentro. Mas esta é uma atitude muito preguiçosa. Dá trabalho olhar para o dentro. É isso o que faz Glass: nos convida a olhar para o dentro de algo que não está exatamente dado. Temos um cubo transparente com três mulheres dentro. Fora, duas platéias, uma de frente pra outra com o cubo no meio. Vê se de tudo: todos os lados (até o chão é translúcido e permite discernir a luz de cada refletor), por dentro e por fora, vemos até a platéia que fica do outro lado, tudo iluminado. Vemos um fantasma do triângulo do drama, cercado de superfícies quadradas (ou retangulares) por todos os lados. Vemos uma superposição de visualidades, vemos uma possível peça de teatro dentro de uma possível obra de arte. Ouvimos um texto mas não o vemos. Vemos uma cena mas não a ouvimos, nem quando elas gritam.
De qualquer forma, o encubamento do feminino é um experimento grave. Não dá pra explicar o que acontece ali. Por mais que se esgarce um triângulo, por mais que aquelas três mulheres se dilacerem, a soma de seus ângulos será sempre de 180° (tem alguma coisa que é sempre teatro), o espaço que elas ocupam é sempre dentro dos limites do vidro. Mas são limites de vidro. O vidro é forte e frágil, sustenta mas sempre parece que pode se romper; contém e revela. A natureza do vidro promete um corte. Estes são uns dos meus: É o dentro do cubo que é difícil de entender? São as nossas formas de percepção que não foram feitas pra dar conta das coisas? Qual é a natureza dos meus limites de visão? Meu universo é de vidro? O universo feminino é de vidro? Se fosse uma peça com três homens angustiados dentro de um cubo, ele seria de aço inoxidável?
O dentro de Glass é o dentro de cada um. Além de jogar com os nossos sentidos (tanto os sentidos da percepção quanto os sentidos que atribuímos às coisas), Glass coloca em questão o velho paradigma de que o teatro é uma experiência coletiva – que por mais velho que seja, ainda está por aí. Os headphones apenas sublinham isso. A abstração ali presente faz a recepção ser muito pessoal e evidencia o quanto toda recepção é muito pessoal. (Parece lugar-comum mas, no panorama atual do teatro carioca, é exceção.) O esforço de reunir, enquadrar, definir e explicar o conteúdo de um trabalho de arte é de vidro. Estamos ali sentados – cada um no seu cubo de vidro – e nossa experiência também tem uma superfície, um encubamento, um limite, uma transparência, uma dimensão, uma estatura, uma mediação, um dentro e um fora. E não há imagem de coletivo que dê conta da experiência de cada um. Não há voz feminina que dê conta de três mulheres ao mesmo tempo. Não há nada do lado de fora que defina o lado de dentro; e em vez de pensar que não há nada do lado de dentro, talvez não haja nada do lado de fora.
Daniele Avila, novembro de 2007