Arlequim e Mirandolina - Cada um em seu lugar
Para escrever sobre o espetáculo Arlequim e Mirandolina, uma pequena confusão se estabelece: foi necessário jogar com alguns conceitos pré-formados que geralmente orientam minha percepção das peças. (Digo "conceitos pré-formados" apenas porque não quis dizer "preconceitos" logo de início, para tentar desviar do sentido mesquinho da palavra.) Os preconceitos (no seu sentido amplo) não são apenas inevitáveis, mas imprescindíveis. No livro O que é política? Hannah Arendt faz a seguinte observação:
"Não se precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no cotidiano – e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente para julgar de novo tudo o que exigisse um juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano."
Logo depois, ela acrescenta:
"É evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só vale para os verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que não afirmem ser juízos."
E neste ponto encontro um traço importante da crítica que é saber usar seus preconceitos para dialogar com os seus objetos sem cair na armadilha de armar-se com seus preconceitos para proferir juízos sobre os seus objetos. Os preconceitos estão presentes na abordagem crítica de uma obra na mesma medida em que estão presentes na própria constituição da obra. A graça do diálogo entre crítica e obra (uma delas, pelo menos) é que a obra pode sacudir os preconceitos da crítica na mesma medida em que a crítica pode sacudir os preconceitos da obra.
Minha vontade de assistir Arlequim e Mirandolina partiu do fato de ser muito raro ver um espetáculo de rua no Rio de Janeiro. O último de que tive notícia, Till Eulenspiegel, fez poucas apresentações em outubro de 2007 no riocenacontemporanea, como parte da Mostra Nacional de Teatro Universitário e, diga-se de passagem, ganhou o prêmio de melhor espetáculo. Num debate que aconteceu durante o festival, lembro dos atores desta peça dizendo que o teatro de rua é o único teatro que eles fazem. Se não me engano, ouvi alguém dizer que eles começaram a fazer teatro de rua porque não existe – ou não existia – sala de teatro na cidade onde moram. O teatro que eles sabem fazer e que é possível assistir é o teatro de rua.
Por não termos o hábito – nem de fazer nem de assistir – este tipo de peça, Arlequim e Mirandolina é difícil de analisar e é provável que seja difícil de fazer. Ao longo do espetáculo, percebi que os atores também estavam, ainda naquele momento de estréia, em tensão com os seus pontos de referência: a carga da experiência de ter feito peças dentro de salas de espetáculos está presente em seus corpos, suas vozes e na forma de lidar com o público. Os atores estavam se percebendo e se construindo ali mesmo. No entanto, isso apenas evidencia uma processualidade, não uma falência.
No teatro de rua, estar pronto – no sentido de estar finalizado, aprovado e validado – não é tudo. Pelo contrário, isso seria um passo em falso, um equívoco mesmo. Teatro de rua só começa na rua porque ele só é viável com a rua. Tentar impôr uma forma redonda e polida de teatro ao espaço público da cidade seria dar um tiro no pé. As contingências, sempre bem-vindas em qualquer forma de arte, constituem o que há de mais interessante no espetáculo de rua. Quem assistiu o Romeu e Julieta do Grupo Galpão no Arpoador há alguns anos deve se lembrar da passagem de um helicóptero, que foi transformada em um belo recorte de cena. O ator, neste contexto, precisa estar pronto no sentido de estar disponível para fazer parte da rua, para habitá-la no seu papel de artista e não para apresentar-se diante dela.
Um dos atores frisa, logo no início, que a peça deve acontecer de modo que permaneça "cada um em seu lugar: atores, músico e público". É irônico, uma vez que o espetáculo embaralha alguns lugares estabelecidos. A construção do tablado na praça, por si só, já provoca uma reunião em um espaço que, hoje em dia, é lugar de passagem e dispersão. O palco que numa sala protege o ator, na rua coloca-o em risco, praticamente como alvo de qualquer manifestação imprevista. Os personagens têm seu lugar determinado, mas a adaptação – que mescla dois textos do Goldoni – revela em Mirandolina traços comuns com Arlequim (e talvez arriscar um desenho mais semelhante ao dele seja uma opção interessante para ela).
Mas o que me pareceu mais fora de seu lugar foi o público. A heterogeneidade na platéia é aquela que vemos no calçadão de Copacabana: velhinhos, ciclistas, turistas, famílias, trombadinhas, vendedor de algodão doce, crianças fazendo bagunça, bebês chorando, senhoras em suas cadeiras de praia, enfim, um pouco de tudo. Não sei quem estava mais (ou menos) deslocado: um rapaz que chamava, em altos brados, uma criança que se recusava a ir embora antes do desfecho da trama ou a mãe de família de classe média que, considerando aquilo uma indigência, ficava fazendo "shhhh" como se estivesse no Teatro do Leblon. Na verdade, estava mesmo cada um em seu lugar: ela estava "como se" estivesse na platéia de um teatro, pois ela tinha se preparado para dar atenção a alguma coisa que – como se sabe – deve ser apreciada de maneira civilizada; e ele estava na rua, "como se" estivesse em casa, chamando o filho pra ir tomar banho enquanto este não tira os olhos da televisão. A questão é como cada um pode estar em seu lugar e viver junto ao mesmo tempo.
Arlequim e Mirandolina coloca em evidência a relação da cidade com o teatro ao misturar pessoas e misturar práticas, sobrepondo seus respectivos lugares comuns, revelando assim uma série de preconceitos – no sentido amplo e no sentido mesquinho – tanto do público quanto da crítica e dos próprios artistas envolvidos, na medida em que todos são convidados a pensar suas expectativas diante de uma forma de teatro que, por mais antiga que seja, é sempre novidade no cenário carioca.
Daniele Avila
Janeiro de 2008
"Não se precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no cotidiano – e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente para julgar de novo tudo o que exigisse um juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano."
Logo depois, ela acrescenta:
"É evidente que essa justificação do preconceito enquanto medida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só vale para os verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que não afirmem ser juízos."
E neste ponto encontro um traço importante da crítica que é saber usar seus preconceitos para dialogar com os seus objetos sem cair na armadilha de armar-se com seus preconceitos para proferir juízos sobre os seus objetos. Os preconceitos estão presentes na abordagem crítica de uma obra na mesma medida em que estão presentes na própria constituição da obra. A graça do diálogo entre crítica e obra (uma delas, pelo menos) é que a obra pode sacudir os preconceitos da crítica na mesma medida em que a crítica pode sacudir os preconceitos da obra.
Minha vontade de assistir Arlequim e Mirandolina partiu do fato de ser muito raro ver um espetáculo de rua no Rio de Janeiro. O último de que tive notícia, Till Eulenspiegel, fez poucas apresentações em outubro de 2007 no riocenacontemporanea, como parte da Mostra Nacional de Teatro Universitário e, diga-se de passagem, ganhou o prêmio de melhor espetáculo. Num debate que aconteceu durante o festival, lembro dos atores desta peça dizendo que o teatro de rua é o único teatro que eles fazem. Se não me engano, ouvi alguém dizer que eles começaram a fazer teatro de rua porque não existe – ou não existia – sala de teatro na cidade onde moram. O teatro que eles sabem fazer e que é possível assistir é o teatro de rua.
Por não termos o hábito – nem de fazer nem de assistir – este tipo de peça, Arlequim e Mirandolina é difícil de analisar e é provável que seja difícil de fazer. Ao longo do espetáculo, percebi que os atores também estavam, ainda naquele momento de estréia, em tensão com os seus pontos de referência: a carga da experiência de ter feito peças dentro de salas de espetáculos está presente em seus corpos, suas vozes e na forma de lidar com o público. Os atores estavam se percebendo e se construindo ali mesmo. No entanto, isso apenas evidencia uma processualidade, não uma falência.
No teatro de rua, estar pronto – no sentido de estar finalizado, aprovado e validado – não é tudo. Pelo contrário, isso seria um passo em falso, um equívoco mesmo. Teatro de rua só começa na rua porque ele só é viável com a rua. Tentar impôr uma forma redonda e polida de teatro ao espaço público da cidade seria dar um tiro no pé. As contingências, sempre bem-vindas em qualquer forma de arte, constituem o que há de mais interessante no espetáculo de rua. Quem assistiu o Romeu e Julieta do Grupo Galpão no Arpoador há alguns anos deve se lembrar da passagem de um helicóptero, que foi transformada em um belo recorte de cena. O ator, neste contexto, precisa estar pronto no sentido de estar disponível para fazer parte da rua, para habitá-la no seu papel de artista e não para apresentar-se diante dela.
Um dos atores frisa, logo no início, que a peça deve acontecer de modo que permaneça "cada um em seu lugar: atores, músico e público". É irônico, uma vez que o espetáculo embaralha alguns lugares estabelecidos. A construção do tablado na praça, por si só, já provoca uma reunião em um espaço que, hoje em dia, é lugar de passagem e dispersão. O palco que numa sala protege o ator, na rua coloca-o em risco, praticamente como alvo de qualquer manifestação imprevista. Os personagens têm seu lugar determinado, mas a adaptação – que mescla dois textos do Goldoni – revela em Mirandolina traços comuns com Arlequim (e talvez arriscar um desenho mais semelhante ao dele seja uma opção interessante para ela).
Mas o que me pareceu mais fora de seu lugar foi o público. A heterogeneidade na platéia é aquela que vemos no calçadão de Copacabana: velhinhos, ciclistas, turistas, famílias, trombadinhas, vendedor de algodão doce, crianças fazendo bagunça, bebês chorando, senhoras em suas cadeiras de praia, enfim, um pouco de tudo. Não sei quem estava mais (ou menos) deslocado: um rapaz que chamava, em altos brados, uma criança que se recusava a ir embora antes do desfecho da trama ou a mãe de família de classe média que, considerando aquilo uma indigência, ficava fazendo "shhhh" como se estivesse no Teatro do Leblon. Na verdade, estava mesmo cada um em seu lugar: ela estava "como se" estivesse na platéia de um teatro, pois ela tinha se preparado para dar atenção a alguma coisa que – como se sabe – deve ser apreciada de maneira civilizada; e ele estava na rua, "como se" estivesse em casa, chamando o filho pra ir tomar banho enquanto este não tira os olhos da televisão. A questão é como cada um pode estar em seu lugar e viver junto ao mesmo tempo.
Arlequim e Mirandolina coloca em evidência a relação da cidade com o teatro ao misturar pessoas e misturar práticas, sobrepondo seus respectivos lugares comuns, revelando assim uma série de preconceitos – no sentido amplo e no sentido mesquinho – tanto do público quanto da crítica e dos próprios artistas envolvidos, na medida em que todos são convidados a pensar suas expectativas diante de uma forma de teatro que, por mais antiga que seja, é sempre novidade no cenário carioca.
Daniele Avila
Janeiro de 2008
ARLEQUIM E MIRANDOLINA ESTÁ EM CARTAZ NA PRAÇA TIRANDENTES (QUINTAS ÀS 18H), NO LARGO DA CARIOCA (SEXTAS ÀS 18H) E NA PRAIA DO ARPOADOR (SÁBADOS E DOMINGOS ÀS 19H) ATÉ 31 DE JANEIRO (UMA QUINTA-FEIRA QUE TERÁ A ÚLTIMA APRESENTAÇÃO DA PEÇA NO ARPOADOR)