Montaigne - O despertar da intratável realidade
(Para a pequena Mariana Maltoni e sua pungente Fotografia)
“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém as escuta, é preciso recomeçar sempre.”[i]
Mas não é só isso. Não é que ninguém escute, pois tem sempre alguém que escuta e deste alguém que sempre escuta falaremos daqui a pouco. Gide fala das “coisas ditas” e isto me remete, inevitavelmente, ao “dizer as coisas”. E quando diz “é preciso”, acaba dizendo “eu preciso”. Nesta frase do Gide, que entrou aqui sem pedir licença, eu sempre leio: “Eu preciso dizer coisas que já foram ditas, não importa para quem, sempre”. Então vamos falar do ensaio (e do ensaísta). Para falar do ensaísta, escolhemos Montaigne (sujeito que é o nosso objeto) pois, pelo menos no caso dele, não é possível separar a obra do autor: ele e seu livro são uma coisa em comum. Assim, perguntamos: O que é o ensaio? O que é o ensaísta? O que o ensaio tem de particular e relevante?
O ensaio é uma espécie de auto-retrato falante, que flagra o instante da experiência de um punctum, dentro de uma moldura fantasma. Fantasma, eu digo, porque tem gente que vê, tem gente que não vê, e mesmo quem vê não vê necessariamente no mesmo lugar e nem da mesma forma. E não há juiz que decida de quem é o ponto. Como uma forma sem fórmula, as características do ensaio dançam entre si e assumem suas formas de acordo com o foco e o enquadramento do ensaísta. E o brilho do ensaio está nesta sensualidade de suas fronteiras, no livre jogo de seus limites, quando se avizinha e ao mesmo tempo se afasta de outras formas. Sobre a moldura do ensaio, encontro uma expressão de Roland Barthes (ele se referia a uma fotografia especial): “A resistência apaixonada a qualquer sistema redutor.”[ii]
A escrita de si nunca é só de si, e sim de si diante de alguma coisa, alguma coisa que funciona como um espelho, um espelho de pensamento que faz o sujeito auscultar-se a si próprio ao escrever sobre o objeto, seja ele qual for. O que é flagrado, fisgado, surpreendido, retratado e revelado é o fenômeno da ligação entre o sujeito e o objeto, fenômeno que fornece o assunto para o ensaio. O termo shot ilustra melhor a impressão que eu tenho: o sujeito leva um tiro do objeto, como um flash de uma máquina fotográfica e o objeto que surge diante dele aparece inteiro em um clarão. Nas histórias em quadrinhos, um balãozinho com uma lâmpada acesa dá uma boa imagem deste shot. O início, o fim e os meios desta idéia vêem de uma vez só: a simultaneidade de seus aspectos é pungente demais para ser submetida a uma ordem imposta de fora.
Assim o ensaísta vai falando de si através do seu punctun[iii], da ferida, da flechada, da bala que fez um furo no muro que separa sujeito e objeto. Este espaço que é um buraco é o espaço da identidade, da experiência relevante: é o espaço do ensaio. Recorro de novo a outra expressão de Roland Barthes, já que ele vem se impondo desde o título. “A pressão do indizível que se quer dizer”. Este indizível que se precisa dizer (que precisa ser dito, como diria André Gide) é o objeto universal do ensaio, independente da sua manifestação particular em um assunto qualquer. O punctun do Barthes, o “estalo”, o que “o anima” como uma “aventura”, é a aventura da produção de sentido.
A filosofia de Kant se propôs a delimitar o que o homem pode e o que o homem não pode conhecer. Esta delimitação, porém, não restringiu os limites do homem, mas ampliou-os, pois ela deu ao homem a liberdade para que ele pensasse – mesmo sem chegar a efetivamente conhecer – tudo o que quisesse. O ensaio é, para mim, exatamente isso: a possibilidade de pensar alguma coisa sem o peso de ter que chegar a uma verdade sobre ela; abordar um objeto sem manipulá-lo, sem impor a ele uma utilidade ou qualquer outra coisa. E Kant mostra o quanto é relevante pensar sobre as coisas que não podemos realmente conhecer. Até o si-mesmo, a coisa em si do sujeito. Na Crítica da faculdade do juízo ele diz: “A consciência de si mesmo está, pois, muito longe de ser um conhecimento de si mesmo.” Mesmo que não seja possível conhecer-se por completo, tentar conhecer-se é uma necessidade vital. O instrumento de exercício da liberdade de pensar o que não se pode conhecer é a imaginação. Desta forma, Kant eleva a imaginação a um status de faculdade VIP do conhecimento. É através dela que o homem quebra as regras do conhecimento, extrapola os seus limites e exerce a sua liberdade. Ele explica por A + B porque é que imaginação e liberdade andam sempre de mãos dadas (pois deve ter sido assim desde o início dos tempos): a imaginação é a fada-madrinha da produção de sentido. E o ensaio transita neste universo de imaginação e liberdade.
Barthes vê as fotos que o ferem como pontuadas (uma pequena dissonância imagem/verbo). O ensaio também sugere uma espécie de dissonância, na medida em que, por trás das palavras, está o que não é dizível. O ensaio é fruto da revelação de uma imagem que exige o verbo para não se desvanecer, para prolongar no tempo e no espaço a sensação daquele shot, daquela flechada do cupido que faz o homem se apaixonar pela sua própria humanidade. Por isso Montaigne faz questão de frisar que ele mesmo é o seu assunto, que seus ensaios são um exercício de autocontemplação.
Mas o que tem de interessante nisso para quem lê? Qual é a graça, para o leitor, que o ensaísta fale de si? Para Montaigne, muito simples: “Cada homem leva em si a forma inteira da humana condição.”[iv] Esta é uma afirmação inteira, digna de um homem inteiro. Mas um homem inteiro também se contradiz (e sua contradição o completa). Montaigne, no ensaio Do Arrependimento diz que “Outros formam o homem, eu relato a seu respeito.”[v] Mas, no ensaio Da educação das crianças ele se detém apaixonadamente neste assunto da educação, e ao sugerir e orientar a educação, ele forma, e forma pelo discurso. Mas nos outros ele forma pelo exemplo. E aqui chegamos a um ponto chave desta exposição: o exemplo.
Vejamos o exemplo de Montaigne. Erich Auerbach chamou a atenção para o contexto histórico dos Ensaios. Ao escrever “o primeiro livro da autoconsciência leiga”[vi], Montaigne critica, em diversos momentos, a cultura livresca e a sabedoria científica. Ainda no ensaio Da educação das crianças, ele diz: “(...) para um rapaz que mais desejaríamos honesto do que sábio, seria útil que se escolhesse um guia com cabeça bem formada, mais do que exageradamente cheia e que, embora se exigissem as duas coisas, tivesse melhores costumes e inteligência do que ciência.”[vii] Com este tipo de discurso, Montaigne foi o primeiro exemplo do modo de pensar daquela classe de homens dotados de uma cultura geral não-especializada, que despontava entre a burguesia urbana e a aristocracia, que tinha melhores costumes e inteligência do que ciência. A relevância do exemplo está no fato de que foi através dos Ensaios, através da resposta à manifestação do ensaísta, que esta classe ganhou expressão. Foi quando ela se constituiu enquanto público leitor, que se sentia destinatário (interlocutor) daquele discurso, que começou a ganhar unidade e consciência de si. Não é à toa que desta classe surgiu a concretização da crítica como parte indispensável da forma de ver o mundo moderno.
O sujeito como exemplo, a figura do ensaísta, convoca para o jogo o seu duplo necessário: o interlocutor. Quem é o interlocutor? O que ele representa? Quando o ensaio assume a forma de carta, endereçada a uma pessoa específica, a problemática do interlocutor fica para escanteio, como que adiada: o ensaísta tem a oportunidade de dar ao seu interlocutor uma definição no espaço e no tempo, uma dimensão de realidade. Mas quando não é o caso, o interlocutor é um amigo imaginário, como o que as crianças inventam e com quem conversam sobre as suas descobertas constantes. Este amigo imaginário tem uma semelhança com o ensaísta, como se este tivesse criado um desdobramento de si mesmo, ou melhor, um leitor de si mesmo. O interlocutor imaginário é aquele alguém que sempre escuta, de quem estávamos falando no início, por causa da frase do Gide. O interlocutor do ensaio é um exemplo de leitor.
E o que tem de interessante, para o leitor, neste jogo entre o sujeito que escreve e o seu interlocutor imaginário? O interessante é a semelhança, tanto entre o ensaísta e interlocutor imaginário, como entre o interlocutor imaginário e o leitor. Pela semelhança, o leitor se identifica com o ensaísta quando este funciona como exemplo de uma força da natureza que precisa ver o mundo como obra de arte, como coisa bela ou mistério inexplicável e, ao mesmo tempo, pretende que esta experiência seja falada e compartilhada. Lukács diz que o paradoxo do ensaio é quase o mesmo do retrato[viii]: a questão da semelhança, que pode existir até sem que haja um referencial definido. O sujeito do ensaio também carrega uma semelhança que, como no retrato, sugere uma vida. Ele é o exemplo de uma característica pontuante da condição humana: a vida que punge e anima, a centelha de identidade que o ser humano sente em um momento de emoção estética, fazendo a vida revelar uma pista do seu sentido e despertando o olhar para a sua intratável realidade.
Foi aquela consideração do Lukács, comparando o ensaio com o retrato, que me fez lembrar das considerações de Barthes sobre a fotografia e, com isso, comparar também o ensaio com a fotografia. Se observarmos a semelhança entre o retrato (ou auto-retrato) e a fotografia (ou auto-fotografia), vemos que são tão parecidos quanto diferentes. São parecidos no produto final – embora a semelhança na fotografia não seja motivo de assombro – mas são diferentes nos seus meios. A fotografia pode ser instantânea, mas o retrato precisa de tempo para ser construído. A combinação destas duas coisas – o instantâneo e o elaborado – me faz pensar que, no ensaio, o objeto é como o flash da fotografia, e o texto é como o conjunto de pinceladas do quadro. Por isso, quando Barthes diz que a fotografia transforma o sujeito em objeto, eu penso: o ensaio também. E o que Montaigne relata são os processos (como as pinceladas de um retrato) de uma formação que vem de dentro, como a imagem latente no negativo esperando ser revelada, como a realidade da vida ansiando por ser tratável.
O processo de revelação se dá no ensaio quando ele é ferramenta para elevar o homem qualquer para o estado da condição humana, sublimando o particular em universal. O ensaio é a necessidade de celebrar este mundo vislumbrado que o homem quer compartilhar com seu amigo imaginário universal. “A razão é que sofremos com nossa admiração solitária e que gostaríamos que outras pessoas amassem apaixonadamente.”[ix] O ensaio é o exercício do gosto que se discute. Porque no gosto, no ajuizamento, na crítica, o homem exerce a sua humanidade, cria sentido, e afirma a sua liberdade: a liberdade de dizer com o que se parece o todo da humanidade.
O ensaio é o espaço desta comunicabilidade espontânea e necessária, desinteressada e comprometida, que o homem sente diante de algo que o move a falar de suas impressões, e não da realidade dada como completa, pois esta se furtaria à expressão. Para Montaigne, quem tem que ser completo é o homem, a realidade está na experiência pessoal. Só esta é tratável. Ou melhor, retratável. Auto-retratável.
Daniele Avila, Rio de Janeiro, maio de 2006
[i] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 9
[ii] BARTHES, Roland. A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1984. ver pag
[iii] idem Capítulo 10
[iv] AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004 Pag 250
[v] idem Pág 250
[vi] idem Pág 273
[vii] MONTAIGNE, Michel Eyquem De. Ensaios 1.Brasília: Universidade de Brasília; Hucitec, 1987 ver pág
[viii] LUKÁCS, Georg. Soul and Form. Cambrige, The MIT Press, 1980
[ix] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 24
Mas não é só isso. Não é que ninguém escute, pois tem sempre alguém que escuta e deste alguém que sempre escuta falaremos daqui a pouco. Gide fala das “coisas ditas” e isto me remete, inevitavelmente, ao “dizer as coisas”. E quando diz “é preciso”, acaba dizendo “eu preciso”. Nesta frase do Gide, que entrou aqui sem pedir licença, eu sempre leio: “Eu preciso dizer coisas que já foram ditas, não importa para quem, sempre”. Então vamos falar do ensaio (e do ensaísta). Para falar do ensaísta, escolhemos Montaigne (sujeito que é o nosso objeto) pois, pelo menos no caso dele, não é possível separar a obra do autor: ele e seu livro são uma coisa em comum. Assim, perguntamos: O que é o ensaio? O que é o ensaísta? O que o ensaio tem de particular e relevante?
O ensaio é uma espécie de auto-retrato falante, que flagra o instante da experiência de um punctum, dentro de uma moldura fantasma. Fantasma, eu digo, porque tem gente que vê, tem gente que não vê, e mesmo quem vê não vê necessariamente no mesmo lugar e nem da mesma forma. E não há juiz que decida de quem é o ponto. Como uma forma sem fórmula, as características do ensaio dançam entre si e assumem suas formas de acordo com o foco e o enquadramento do ensaísta. E o brilho do ensaio está nesta sensualidade de suas fronteiras, no livre jogo de seus limites, quando se avizinha e ao mesmo tempo se afasta de outras formas. Sobre a moldura do ensaio, encontro uma expressão de Roland Barthes (ele se referia a uma fotografia especial): “A resistência apaixonada a qualquer sistema redutor.”[ii]
A escrita de si nunca é só de si, e sim de si diante de alguma coisa, alguma coisa que funciona como um espelho, um espelho de pensamento que faz o sujeito auscultar-se a si próprio ao escrever sobre o objeto, seja ele qual for. O que é flagrado, fisgado, surpreendido, retratado e revelado é o fenômeno da ligação entre o sujeito e o objeto, fenômeno que fornece o assunto para o ensaio. O termo shot ilustra melhor a impressão que eu tenho: o sujeito leva um tiro do objeto, como um flash de uma máquina fotográfica e o objeto que surge diante dele aparece inteiro em um clarão. Nas histórias em quadrinhos, um balãozinho com uma lâmpada acesa dá uma boa imagem deste shot. O início, o fim e os meios desta idéia vêem de uma vez só: a simultaneidade de seus aspectos é pungente demais para ser submetida a uma ordem imposta de fora.
Assim o ensaísta vai falando de si através do seu punctun[iii], da ferida, da flechada, da bala que fez um furo no muro que separa sujeito e objeto. Este espaço que é um buraco é o espaço da identidade, da experiência relevante: é o espaço do ensaio. Recorro de novo a outra expressão de Roland Barthes, já que ele vem se impondo desde o título. “A pressão do indizível que se quer dizer”. Este indizível que se precisa dizer (que precisa ser dito, como diria André Gide) é o objeto universal do ensaio, independente da sua manifestação particular em um assunto qualquer. O punctun do Barthes, o “estalo”, o que “o anima” como uma “aventura”, é a aventura da produção de sentido.
A filosofia de Kant se propôs a delimitar o que o homem pode e o que o homem não pode conhecer. Esta delimitação, porém, não restringiu os limites do homem, mas ampliou-os, pois ela deu ao homem a liberdade para que ele pensasse – mesmo sem chegar a efetivamente conhecer – tudo o que quisesse. O ensaio é, para mim, exatamente isso: a possibilidade de pensar alguma coisa sem o peso de ter que chegar a uma verdade sobre ela; abordar um objeto sem manipulá-lo, sem impor a ele uma utilidade ou qualquer outra coisa. E Kant mostra o quanto é relevante pensar sobre as coisas que não podemos realmente conhecer. Até o si-mesmo, a coisa em si do sujeito. Na Crítica da faculdade do juízo ele diz: “A consciência de si mesmo está, pois, muito longe de ser um conhecimento de si mesmo.” Mesmo que não seja possível conhecer-se por completo, tentar conhecer-se é uma necessidade vital. O instrumento de exercício da liberdade de pensar o que não se pode conhecer é a imaginação. Desta forma, Kant eleva a imaginação a um status de faculdade VIP do conhecimento. É através dela que o homem quebra as regras do conhecimento, extrapola os seus limites e exerce a sua liberdade. Ele explica por A + B porque é que imaginação e liberdade andam sempre de mãos dadas (pois deve ter sido assim desde o início dos tempos): a imaginação é a fada-madrinha da produção de sentido. E o ensaio transita neste universo de imaginação e liberdade.
Barthes vê as fotos que o ferem como pontuadas (uma pequena dissonância imagem/verbo). O ensaio também sugere uma espécie de dissonância, na medida em que, por trás das palavras, está o que não é dizível. O ensaio é fruto da revelação de uma imagem que exige o verbo para não se desvanecer, para prolongar no tempo e no espaço a sensação daquele shot, daquela flechada do cupido que faz o homem se apaixonar pela sua própria humanidade. Por isso Montaigne faz questão de frisar que ele mesmo é o seu assunto, que seus ensaios são um exercício de autocontemplação.
Mas o que tem de interessante nisso para quem lê? Qual é a graça, para o leitor, que o ensaísta fale de si? Para Montaigne, muito simples: “Cada homem leva em si a forma inteira da humana condição.”[iv] Esta é uma afirmação inteira, digna de um homem inteiro. Mas um homem inteiro também se contradiz (e sua contradição o completa). Montaigne, no ensaio Do Arrependimento diz que “Outros formam o homem, eu relato a seu respeito.”[v] Mas, no ensaio Da educação das crianças ele se detém apaixonadamente neste assunto da educação, e ao sugerir e orientar a educação, ele forma, e forma pelo discurso. Mas nos outros ele forma pelo exemplo. E aqui chegamos a um ponto chave desta exposição: o exemplo.
Vejamos o exemplo de Montaigne. Erich Auerbach chamou a atenção para o contexto histórico dos Ensaios. Ao escrever “o primeiro livro da autoconsciência leiga”[vi], Montaigne critica, em diversos momentos, a cultura livresca e a sabedoria científica. Ainda no ensaio Da educação das crianças, ele diz: “(...) para um rapaz que mais desejaríamos honesto do que sábio, seria útil que se escolhesse um guia com cabeça bem formada, mais do que exageradamente cheia e que, embora se exigissem as duas coisas, tivesse melhores costumes e inteligência do que ciência.”[vii] Com este tipo de discurso, Montaigne foi o primeiro exemplo do modo de pensar daquela classe de homens dotados de uma cultura geral não-especializada, que despontava entre a burguesia urbana e a aristocracia, que tinha melhores costumes e inteligência do que ciência. A relevância do exemplo está no fato de que foi através dos Ensaios, através da resposta à manifestação do ensaísta, que esta classe ganhou expressão. Foi quando ela se constituiu enquanto público leitor, que se sentia destinatário (interlocutor) daquele discurso, que começou a ganhar unidade e consciência de si. Não é à toa que desta classe surgiu a concretização da crítica como parte indispensável da forma de ver o mundo moderno.
O sujeito como exemplo, a figura do ensaísta, convoca para o jogo o seu duplo necessário: o interlocutor. Quem é o interlocutor? O que ele representa? Quando o ensaio assume a forma de carta, endereçada a uma pessoa específica, a problemática do interlocutor fica para escanteio, como que adiada: o ensaísta tem a oportunidade de dar ao seu interlocutor uma definição no espaço e no tempo, uma dimensão de realidade. Mas quando não é o caso, o interlocutor é um amigo imaginário, como o que as crianças inventam e com quem conversam sobre as suas descobertas constantes. Este amigo imaginário tem uma semelhança com o ensaísta, como se este tivesse criado um desdobramento de si mesmo, ou melhor, um leitor de si mesmo. O interlocutor imaginário é aquele alguém que sempre escuta, de quem estávamos falando no início, por causa da frase do Gide. O interlocutor do ensaio é um exemplo de leitor.
E o que tem de interessante, para o leitor, neste jogo entre o sujeito que escreve e o seu interlocutor imaginário? O interessante é a semelhança, tanto entre o ensaísta e interlocutor imaginário, como entre o interlocutor imaginário e o leitor. Pela semelhança, o leitor se identifica com o ensaísta quando este funciona como exemplo de uma força da natureza que precisa ver o mundo como obra de arte, como coisa bela ou mistério inexplicável e, ao mesmo tempo, pretende que esta experiência seja falada e compartilhada. Lukács diz que o paradoxo do ensaio é quase o mesmo do retrato[viii]: a questão da semelhança, que pode existir até sem que haja um referencial definido. O sujeito do ensaio também carrega uma semelhança que, como no retrato, sugere uma vida. Ele é o exemplo de uma característica pontuante da condição humana: a vida que punge e anima, a centelha de identidade que o ser humano sente em um momento de emoção estética, fazendo a vida revelar uma pista do seu sentido e despertando o olhar para a sua intratável realidade.
Foi aquela consideração do Lukács, comparando o ensaio com o retrato, que me fez lembrar das considerações de Barthes sobre a fotografia e, com isso, comparar também o ensaio com a fotografia. Se observarmos a semelhança entre o retrato (ou auto-retrato) e a fotografia (ou auto-fotografia), vemos que são tão parecidos quanto diferentes. São parecidos no produto final – embora a semelhança na fotografia não seja motivo de assombro – mas são diferentes nos seus meios. A fotografia pode ser instantânea, mas o retrato precisa de tempo para ser construído. A combinação destas duas coisas – o instantâneo e o elaborado – me faz pensar que, no ensaio, o objeto é como o flash da fotografia, e o texto é como o conjunto de pinceladas do quadro. Por isso, quando Barthes diz que a fotografia transforma o sujeito em objeto, eu penso: o ensaio também. E o que Montaigne relata são os processos (como as pinceladas de um retrato) de uma formação que vem de dentro, como a imagem latente no negativo esperando ser revelada, como a realidade da vida ansiando por ser tratável.
O processo de revelação se dá no ensaio quando ele é ferramenta para elevar o homem qualquer para o estado da condição humana, sublimando o particular em universal. O ensaio é a necessidade de celebrar este mundo vislumbrado que o homem quer compartilhar com seu amigo imaginário universal. “A razão é que sofremos com nossa admiração solitária e que gostaríamos que outras pessoas amassem apaixonadamente.”[ix] O ensaio é o exercício do gosto que se discute. Porque no gosto, no ajuizamento, na crítica, o homem exerce a sua humanidade, cria sentido, e afirma a sua liberdade: a liberdade de dizer com o que se parece o todo da humanidade.
O ensaio é o espaço desta comunicabilidade espontânea e necessária, desinteressada e comprometida, que o homem sente diante de algo que o move a falar de suas impressões, e não da realidade dada como completa, pois esta se furtaria à expressão. Para Montaigne, quem tem que ser completo é o homem, a realidade está na experiência pessoal. Só esta é tratável. Ou melhor, retratável. Auto-retratável.
Daniele Avila, Rio de Janeiro, maio de 2006
[i] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 9
[ii] BARTHES, Roland. A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1984. ver pag
[iii] idem Capítulo 10
[iv] AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004 Pag 250
[v] idem Pág 250
[vi] idem Pág 273
[vii] MONTAIGNE, Michel Eyquem De. Ensaios 1.Brasília: Universidade de Brasília; Hucitec, 1987 ver pág
[viii] LUKÁCS, Georg. Soul and Form. Cambrige, The MIT Press, 1980
[ix] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), São Paulo, Éditions Notre Bas de Laine. Pág 24