domingo, agosto 27, 2006

O Púcaro búlgaro - Um excesso de inexistência para uma fábrica de circunflexos

O Púcaro Búlgaro - Romance em Cena - de Campos de Carvalho. Direção de Aderbal Freire-Filho. Em cartaz no Teatro Poeira.

A peça começa no programa da peça. Mas o programa não vem de mão beijada para todo mundo. É preciso desejá-lo. Você pode adquiri-lo por um trocado, não vai fazer diferença. A diferença está no gesto. Como se perguntassem: "Você veio só assistir a peça ou você quer algo mais?" E não se trata de uma lembrancinha, o programa da peça é quase um livro. O papel colorido de jornalzinho de escola convida a uma leitura leve e despretensiosa, mas vibra o conteúdo nos textos indispensáveis, cumprindo uma tarefa búlgara de formar ou informar uma platéia que vai ao teatro, mas que também poderia ter somente saído para jantar.

Sentamos na platéia e ficamos um tempo olhando o cenário. Não tem nenhuma cortina cafona escondendo o óbvio. Entre outras coisas, duas escadas chamam a atenção, como uma promessa de elevação, mas já falida porque uma delas não leva a lugar nenhum. Ela não é transitável: os degraus são frágeis, parecem de acrílico e há apenas os primeiros e os últimos degraus: não tem os meios. Também não tem corrimão, ou seja, não é segura. Uma ascensão impossível: "Não é possível ascender à categoria da verdade." Foi isso o que ficou na minha mente da primeira frase dita na peça. Talvez por causa da escada sem os meios. No entanto, o que "o francês do Gugu" dizia era "Uma vez que o impossível ascende à categoria de verdade, a verdade, por sua vez, pode ascender à categoria de impossível." Bem melhor! (obrigada, Paulo Hamilton e Isio Ghelman pela correção) Aliás, se uma inverdade pode ser possível, porque a verdade não poderia ser impossível? Bom, mas a frase dita em francês é seguida de um convidativo "D'accord?" A platéia responde de pronto, em alto e bom som: "D'accord!" E temos a primeira surpresa: uma platéia que fala francês e se manifesta sem pudor, como num programa de auditório. Uma amiga comenta: será que eles responderiam se a pergunta fosse feita em português? Boa pergunta. Mas é especial quando um receptor se sente um raro exemplo de público alvo. É uma alegria manifestar-se em conjunto quando se sente especializado.

Entre as falas seguintes, uma apresentação curiosa: "Este livro etc..." Que fique bem claro que estamos diante de um romance em cena, ou seja, de algo que flui, que não vai ter aquela chatice de acaba uma cena e depois começa a outra, e que provavelmente não teremos blackout. E não tem mesmo, que bom. O propósito da coisa toda é descobrir a Bulgária, se é que ela existe de fato. A jornada se inicia com um ritual peculiar: o manuscrito do diário da viagem é queimado antes mesmo que ela se inicie diante de nós. Não se queima impune um manuscrito em cena: algo tem que acontecer, o papel, as palavras precisam se dissolver em fumaça, precisam virar cinzas para que ganhem vida na boca de outrem. Finas palavras de Duchamp diziam algo sobre queimar a velha arte para assistir a beleza das cinzas. (É isso mesmo?) Então aquela história de que livro é uma coisa e peça é outra e que cada coisa deve ficar em seu lugar pega fogo ali mesmo. Nesta combustão, ocorre a fusão de sonho e realidade, de teatro e literatura, de atuação e leitura, de ator e personagem. O diário de viagem – prova física embora questionável de que ela aconteceu – é destruído. Um resquício de evidência, de documentação, é privado de sua existência, como se uma prova real de algo estragasse toda a magia da possibilidade de fantasia: o bom de querer desvendar a Bulgária é que talvez ela nem exista. No programa, a definição de patafísica por Alfred Jarry: "a patafísica é a ciência das soluções imaginárias, que dá simbolicamente aos esboços as propriedades dos objetos descritos por sua virtualidade." Esboço e virtualidade têm uma presença forte no Púcaro Búlgaro. Personagens, lugares, ações, reações e idéias são mais esboçadas do que levadas à sua completude, pois tudo perturba mais e preenche mais na sua virtualidade, ou seja, na sua possibilidade, do que na sua realização.

O autor, personagem que conta a história de sua expedição, acredita e duvida do destino da sua jornada (poderíamos dizer: do seu destino), constrói e destrói suas provas. Mas não importa o que ele faça, nem pensa em fazer sozinho. Este não é um andarilho solitário, ele quer compartilhar e se dedica a encontrar os seus pares, como aquele que não se contenta em ler o romance e tem que montar a peça. Ele se surpreende que o primeiro que se interessa pelo seu destino é aquele que considera uma besta, o analista. Primeira "dica", digamos assim, de que esta é uma jornada interior: o que está querendo desvendar-se e o facilitador deste processo têm uma coisa em comum, a curiosidade por este país improvável cuja capital leva o nome de sabedoria. A cena com o analista revela também um pouco da platéia, pois é neste momento que ouvimos os primeiros risos coletivos, fruto do prazeroso desconforto gerado pelo esvaziamento de significado. O bom e velho "diga o que vier à sua cabeça, sem pensar" e a subseqüente chuveirada de palavras associadas ora por sua sonoridade, ora por parte do seu significado, ora por coisa nenhuma faz a platéia rir como criança. Me pergunto se a platéia reage daquele jeito porque para ela, essa brincadeira é, por incrível que pareça, novidade, ou porque a força do elemento dada está na sua capacidade de desconcertar sempre, de desconstruir sempre, de esvaziar qualquer um.

Então conhecemos alguns personagens: Rosa, Expedito, o Ivo que viu a uva, o Professor Radamés, o italiano que teve a brilhante revelação sobre a torre de Pisa: ela não está torta, está reta, todo o resto é que está torto. E isso define a tripulação: personagens tortos, que são os únicos que valem a pena, pois querem ir à Bulgária mesmo que ela não exista. Um vizinho, com quem o autor se comunica pela janela, morre; o diagnóstico do médico: "tem todos os órgãos perfeitos, mas está morto." Assim são os que não se interessam pela viagem búlgara, têm os órgãos perfeitos mas estão mortos. E alguns até se levantam e vão embora antes que a peça acabe.

Estes que vão embora talvez sintam a dor do tempo que passa diante de algo que parece não ter fim, não ter finalidade, pois o tempo é desconstruído na sonoplastia: duas manivelas, uma de cada lado, que giram em torno de si mesmas são acompanhadas de sons diversos: sinos, ou uma corneta de palhaço desafinada, ou barulho de descarga, um tiro de canhão no mar, um gongo, uma fanfarra, uma musiquinha bem carioca, e às vezes um som de guilhotina pesada, violenta, que lembra que o tempo também machuca.

Algumas pessoas vão embora, assim como alguns personagens se candidatam mas não participam da viagem. Porque não é para todo mundo. O sonho negativo, o encanto do que apenas talvez exista é um fardo, um fardo que permite excessos, que demanda ultrapassagens. O Professor Radamés explica que a Bulgária está tão ao nosso alcance que podemos nos confundir com ela, ela pode ser uma Bulgária qualquer, ou um filhote de Bulgária, mas é preciso acreditar que ela pode estar debaixo do tapete ou dentro do bolso, até um náufrago nadando numa tábua poderia encontrar a Bulgária desde que ela lhe aparecesse pela frente. O Professor Radamés é o porta-voz do excesso. Seu discurso extenso demais provoca gargalhadas igualmente extensas, é feérico, exagerado, digno de alguém que concebe um livro escrito por um sábio que não existiu. Parece que ele não vai parar de falar, a platéia está cansada, solta, entregue, porque ele é tão desmedido, porque não há mais o que esperar. E o simples fato de dizer "aqui se sentiu um pouco cansado" arranca aplausos de uma platéia confusa e desarmada. O que não é simples é que ele fala na terceira pessoa, mas ofegante como a primeira pessoa, diz "ele" revelando o "eu" cansado de brincar de "ele". A platéia se manifesta nestas dissonâncias, no questionamento da validade das convenções.

Este momento de excessos evoca o personagem que sublinha sua definição: o personagem que não existe, Fulano C. Meirelles (afinal ele é um personagem de ficção). E porque não existiria um personagem que não existe, já que um certo Papa uma certa vez pulou a existência de alguns dias com a mera intenção de acertar o calendário de acordo com um outro calendário? E toda a peça é sobre isso: coisas, pessoas, lugares que podem não existir. O tripulante ausente é sempre lembrado e conferido. Ele é tão importante quanto os outros, ele é como aquela pessoa que teria adorado assistir à peça, mas que simplesmente não foi, não está lá, mas isso não quer dizer que ela não exista, talvez ela esteja muito compenetrada na sua própria expedição imaginária.

Há uma grande discussão a respeito do veículo a ser utilizado para se chegar à Bulgária, uma infinidade de possibilidades é levada em consideração. Eles fazem a lista do que devem levar, elaborando um inventário gigantesco de coisas úteis ao lado de coisas inúteis, mas que visualizamos com certa facilidade graças à proliferação de objetos de cena que vemos passar, mesmo que por um segundo de nada, ao longo de toda a peça. Nada se decide, mas a partida é eminente, até que a viagem é boicotada por dois tripulantes. Quando pensamos então que tudo está perdido, os atores animadíssimos anunciam aos brados: "A partida!". E repetem várias vezes com entusiasmo e movimento. Um ator chega a subir a escada que nunca é utilizada. Quando a cena se abre, os atores estão sentados à mesa jogando pôquer. A partida é só um jogo.

O Professor Radamés se revela então: "sou um búlgaro". Um búlgaro que não conhece a Bulgária porque saiu de lá muito pequeno, levado pelo pai, que viajou ao Brasil a fim de comprovar que existe o Ceará. A prova da existência búlgara esteve sempre ali naquele que é cheio de excessos, que não se separa da sua bagagem, do seu gato imaginário, que fala as coisas mais bonitas e faz as piadas mais mesquinhas, que come e excreta o tempo todo, que se alimenta, assimila e joga fora. O Professor Radamés se agarra à sua bagagem como o náufrago que se agarra à sua tábua, ele tem fome, e basta ter esta fome estranha para que você se revele um autêntico búlgaro, como aquele que tem certeza que a Torre de Pisa é que está certa, que todo o resto está torto. E o público búlgaro é uma fábrica de circunflexos, não de acentos – como aquela que o outro sonhava construir – mas de indivíduos circunflexos, que enxergam uma certa amargura por trás do humor e por isso riem torto, que precisam aplaudir o excesso, reverenciar o que não existe, procurar seus pares para uma empreitada que não sai do lugar, duvidar dos museus, especialmente os da Filadélfia e – porque não? – ir ao teatro ver mais de uma vez a mesma peça.


Eu, um búlgaro, agosto de 2006.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Contemplating Beauty: Narcisus’s Case

(um essay que não é um ensaio, este textinho carinhoso foi escrito pra uma matéria de literatura no IBEU em 1998 ou 99)

Willa Cather, in
Paul’s Case, tells us the story of a young man who has difficulties in living in the real world. He despises his schoolteachers, his neighbors and his family; everything that surrounds him seems ugly and colorless. Paul is an outsider because he does not fit in the world he lives in. He seeks beauty, so he needs to escape. This search for something unnamed is a characteristic of the tragic hero, the one that abandons his family and his native land to find himself, to find “the truth”. Paul can be seen through that point of view: he is also a hero, because he also makes a journey towards himself [1]. To escape from that ugly town, he travels to New York. This is one of the most important rites that a hero has to go through: to leave his home, to become a stranger, a knockabout in a foreign land. But the first image of a hero that comes to our mind is that of a handsome brave man, like Ulysses, guided by the gods, fighting monsters and storms, the kind that Hegel called the “epic hero”.
It is very peculiar for a hero to be passive, contemplative. In general, the hero is the one that makes heroic deeds, or the one who sacrifices his life for a noble cause. That is not the case with Paul: he is a different type of hero. He is a passive fighter, and that is what makes him so special.
In the very beginning of the story, he is described as a peculiar young man, with a “hysterically defiant manner”. The description of his appearance reveals certain fragility, as if he was almost feminine. There are hints of homosexuality throughout the story: the constant presence of flowers – a feminine symbol –, the hysterical brilliance in his eyes (“peculiarly offensive in a boy”), the night Paul spent with a boy in New York, the dark side of his personality which he dreads to look at. Of course his homosexuality, even if repressed, makes him an outsider, but his choice for solitude is what really isolates him.
In Geek mythology, homosexualism is a symbol of not recognizing the other, of being imprisioned within one’s own body, and it is considered a journey towards the self, a way of becoming an individual. One example of this is the myth of Narcisus, a young man who falls in love with his own image (and that is a way of interpreting homossexuality). There are certain details in Paul’s Case that reminds the myth of Narcisus. The flower, for example, is the most direct image in common with the two stories: Narcisus dies and becomes a flower; Paul’s dream come true in New York and his flight towards death is compared with the blossoming and fading of a flower. Moreover, Paul’s concern with his appearance and the way he looks at the mirror makes us think of him as a “narcissist”. But the most important characteristic of both Narcisus and Paul is their passive attitude towards life, due to their vital need to contemplate beauty.
According to André Gide, “books may not be necessary; a few myths would be enough: we can find a whole religion in them.”
[2] Greek myths are always present in western literature: Aphrodite, Oedipus, Odysseus... but it is not common to find rewritings on Narcisus, probably because the most common association we make is with a vain young man spending a lifetime admiring himself in the mirror of a running river. But perhaps we should reread this story. That is what Gide has done in the year of 1890. In The Narcisus’s Treatise (Theory of Symbol), Gide gives a very peculiar interpretation of the young man who falls in love with himself. To contemplate, according to Gide, is the only way of finding “the truth”. It represents the serenity of self-love. Gide shows us the beauty in Narcisus’s passive action of contemplating, and this is exactly what I intend to bring out in Paul’s Case. But first, it is necessary to remember the myth in order to make a clearer association.
Narcisus, son of a river and a nymph, was a handsome boy with a tragic destiny: he was so handsome he had to be punished. In ancient Greek culture, it was a flaw to be almost as beautiful as the immortal gods. The boy would have a long life, if he did not see himself. All the young girls and nymphs fell in love with him, but he did not care for any of them. One day, Narcisus met one of his admirers in the woods, Echo, who was profoundly in love with him. He rejected her so violently that she became a rock. Nemesis, the goddess of Justice, took revenge on him, and condemned him to love an impossible love. One day, when he was wandering in the forest, he stopped at a fountain to drink some water and saw the image of his own face. At this very moment, he was infatuated by that image. He has never seen such beauty. He couldn’t leave, he couldn’t move: if he went away, that face would vanish, if he tried to touch it, it would disappear. And so he stayed there, bent over the fountain, until the day he died. After a while, a flower appeared in that same spot where his body was lying.
Narcisus’s choice is very similar to Paul’s. Paul is happy to work as an usher in the theatre and to be among artists, but he does not want to be an actor or a musician. Music is just a vehicle to his dream world. He does not have a need to be active. His world is in his mind, in his fantasies. Narcisus also lives in this passive attitude of contemplation. They both give up everything else in the world for the sake of living among beauty, even if for a short period of time. Paul kills himself, and Narcisus starves to death: their lives are short as the life of a flower.
What Gide says about Narcisus “homossexuality” is that his attitude of gazing upon his own image is a way to pursue a lost, primitive, heavenly form of mankind. And in “mankind”, the figure of the woman is what represents the lost of unity. In the Garden of Eden, says Gide, everything was perfect, Adam knew he was the only human creature and that every form had been created for him to contemplate. At a given moment, such harmony began to irritate him and he wanted to experience a little dissonance. So the woman was created and, with her, the constant feeling of something missing.What I see in Paul’s Case is a more symbolic approach of homosexuality . He needs harmony, perfume and beauty, and these are characteristics associated with the feminine universe. But his passive, contemplative attitude is evidence that he is not seeking anything outside himself. On the contrary, his journey is towards his own self, his own first, primitive, heavenly form, like Gide’s image of Adam in the Garden of Eden, before women were created, before anguish was brought into men’s heart.

[1] “It is impossible to give a precise definition of the hero, since the process of identification depends on the attitude of the audience towards the character: the hero is the one we say he is.” (my translation)
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999
[2] GIDE, André. O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo). São Paulo: Éditions Notre Bas de Laine, 1983