Ensaio.Hamlet - Até o próximo Hamlet
Ensaio.Hamlet – direção de Enrique Diaz com a Cia dos Atores.
Teatro do Jóquei, agosto de 2006
Por Daniele Avila
“Tá apertado, mãe. Tá apertado” São estas as primeiras palavras da peça, ou pelo menos são delas que eu me lembro. A mãe tenta vestir o Hamlet. Mas aquelas roupas não cabem mais. Então por que insitir? Por que vestir uma roupa que parece simplesmente não caber? Será em vão?
Teatro do Jóquei, agosto de 2006
Por Daniele Avila
“Tá apertado, mãe. Tá apertado” São estas as primeiras palavras da peça, ou pelo menos são delas que eu me lembro. A mãe tenta vestir o Hamlet. Mas aquelas roupas não cabem mais. Então por que insitir? Por que vestir uma roupa que parece simplesmente não caber? Será em vão?
Seria de fato estúpido dizer que é desnecessário montar Hamlet, ou qualquer outro texto clássico. Novas gerações estão sempre aí, jovens que estão indo ao teatro pela primeira vez têm o direito de ver uma peça que parece que todo mundo já nasceu tendo ouvido falar. Shakespeare faz parte do repertório de humor dos meios de comunicação de massa: o meu primeiro contato com Shakespeare foi através de um episódio de Os Trapalhões, no qual o Didi fazia o papel da Julieta. No jornal O Globo, nestes dias, uma das piadas do Casseta e Planeta era que Mel Gibson tinha atuado em Hamlet, peça de Bárbara Heliodora. Mas a referência, para o espectador, é um tanto nebulosa. O que é esse Hamlet, que soa tão solene?
Hamlet é o sonho de quase todo ator comum que se aproxima dos 30 anos de idade. Hamlet é um rito de passagem que formaliza a maturidade de um ator ou companhia que quer fazer parte do circuito cultural oficial do seu meio. Hamlet é uma peça de Shakespeare, Hamlet é um filme do Kenneth Branagh, Hamlet é o tipo de peça que um ator consagrado faz para ser indicado ao Prêmio Shell. Hamlet é o cara com a caveira, Hamlet é o "ser ou não ser: eis a questão", Hamlet é uma peça que tem uma peça dentro. Hamlet é uma coisa de atores.
Hamlet é o sonho de quase todo ator comum que se aproxima dos 30 anos de idade. Hamlet é um rito de passagem que formaliza a maturidade de um ator ou companhia que quer fazer parte do circuito cultural oficial do seu meio. Hamlet é uma peça de Shakespeare, Hamlet é um filme do Kenneth Branagh, Hamlet é o tipo de peça que um ator consagrado faz para ser indicado ao Prêmio Shell. Hamlet é o cara com a caveira, Hamlet é o "ser ou não ser: eis a questão", Hamlet é uma peça que tem uma peça dentro. Hamlet é uma coisa de atores.
Atores se comportam como mendigos diante da possibilidade de fazer um Mercuccio, um Iago, ou uma Lady Macbeth. Mas qual é a graça? Não é um pouco chato, na verdade, fazer algo que tanta gente já fez? E Shakespeare já foi tão injustamente marcado por uma forma de fazer teatro tão solene e tão careta, que para reavivar o seu frescor, o processo de fazer Hamlet já é mais interessante do que simplesmente fazer mais um Hamlet. No entanto, o processo não interessa a qualquer um. Ensaio.Hamlet é uma peça para quem conhece o Hamlet, ou melhor, para quem gosta do Hamlet. E para quem gosta das coisas simples do teatro, porque tudo nesta montagem é simples, da estrutura do texto aos recursos cênicos da narrativa. Não há efeitos de luz fantásticos, não há nada especial no cenário, não chove em cena. Mas tem torradeira, cafeteira e ferro de passar; tem carne, água e farinha; tem bola de ping-pong e bonequinhos da Rua da Alfândega; tem televisão, rádio e microfone. Os elementos da cena são numerosos, os jogos e objetos se proliferam como para evidenciar que é preciso colocar muita coisa em cena para suprir a falta de uma dramaturgia nova, tão relevante quanto Shakespeare. Ensaio.Hamlet não tem a pretensão de trazer nenhuma linguagem inovadora, nem de desconstruir a peça, espalhando pedaços no tempo e no espaço para que o superentendido na platéia se sinta superior aos outros que não entenderiam nada. A ordem cronológica se mantém, fragmentada apenas por cortes e intervenções, pois ainda há uma vontade de apenas contar esta história que a maior parte da platéia – mesmo uma platéia que poderia ser especializada – na verdade não conhece tão bem.
A montagem da Cia dos Atores é sincera no seu amor por este texto antigo, deixa-se até impregnar por certa mistificação em torno de solilóquios como o "ser ou não ser" e se permite também não levar a sério alguns personagens, o que é um alívio. É o caso de Ofélia, personagem chata como qualquer jovem apaixonada. A apresentação bem-humorada da personagem desconstrói a aura de glamour equivocado em torno dela: Ofélia não é aquela mulher trágica que enlouquece e morre afogada, é só mais uma adolescente que se apaixona pela primeira samambaia que vê na sua frente e escuta hits americanos de bandas de uma música só. É evidente que o que está em questão é "o que fazer com Hamlet" e não "fazer Hamlet". Rosencrantz e Guildenstern, nunca mais os mesmos depois da peça de Tom Stoppard, são usados para sublinhar este processo. No momento em que os personagens são flagrados por Hamlet e obrigados a se despir do seu fingimento, os dois atores se despem literalmente, ficando nus, vendidos diante do problema que é, hoje, com tudo o que já se fez no teatro do mundo todo, fazer uma peça como esta. E assim, vendidos, expostos, se permitem o deslize de explorar um humor de certo mau gosto. E porquê? “Por um sonho de paixão”, pelo deslumbre de ver uma platéia cheia, que faz barulho, que ri de tudo, que aplaude, que comenta, uma platéia faminta que devora ingressos? Vale a pena?
No final, a morte do Hamlet dá um pequeno nó na garganta. Alguns choram. Talvez chorem mesmo pela morte. Não necessariamente pela morte de todos aqueles personagens, nem pela morte do personagem Hamlet, mas pela morte deste Hamlet e de vários outros, pois já morreu o Hamlet do Richard Burbage, morreu o Hamlet do Lawrence Olivier, do John Barrymore, da Sarah Bernhardt, do John Gielgud, morreu o Hamlet do Peter Brook, e um dia vai morrer também o Hamlet da Cia dos Atores. Mas o fantasma do Hamlet estará ainda rondando espetáculos e companhias por muito tempo, como o próprio fantasma do Hamlet-pai que nesta montagem é apenas lido, com aquela voz velada de qualquer ator de outra década ou até de outro século, mas que pode assombrar e emocionar até hoje. O Hamlet-pai, Hamlet-ator, Hamlet-fantasma, Hamlet-monstro é o grande protagonista do teatro ocidental. O Ensaio.Hamlet da Cia dos Atores parece uma espécie de homenagem a este mito.
Da alvoroçada temporada de agosto de 2006 no Teatro do Jóquei, o que fica é a lembrança de um público inquieto, respondendo com toda espécie de ruído a momentos muito bonitos, que de vez em quando vão bater de novo na memória, como aquelas bolinhas de ping-pong que vão continuar fazendo o seu barulhinho bom até o próximo Hamlet.
4 Comments:
VOCÊ FALA COM ARTE DA ARTE
VOCÊ SE REVELA EM BELEZA
ATRAVÉZ DE TEXTO TÃO BELO
VOCÊ É VOCÊ
E QUE QUALIDADE
R D ama scen oN
primeiro
dani, eu te amo e amo lê-la.
;o)
Excelente Dani! Eu sei que esta crítica é mais antiga, mas vou comentar dela porque "Ensaio.Hamlet" foi uma peça que eu vi, e não soube o que pensar ou comentar depois: adorei a idéia de um excesso de objetos concretos para suprir a falta de uma dramaturgia à altura de Shakespeare, e também o despudor - finalmente alguém o teve, valeu!! -de assumir que OFÉLIA É UM SACO!
É difícil o meio termo entre uma crítica "neutra" e argumentativa e aquelas "viagens" individuais tão interessantes quando divulgadas; e vc atinge esse meio termo com precisão.
Valeu!
Beijos
Péricles
o que eu estava procurando, obrigado
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