Não existem níveis seguros para consumo destas substâncias - Igual a tudo na vida
Sobre Não existem níveis seguros para consumo destas substâncias em cartaz no Teatro Maria Clara Machado. Texto de Daniela Pereira de Carvalho, direção de Tato Consorti.
Por Daniele Avila
Arquivos vazios, pôquer, café e cigarros. Uma repartição pública sem utilidade, não muito diferente do cotidiano das pessoas em geral. Problemáticos, infelizes e desesperados esperam – ou já desistiram de esperar – por qualquer coisa que possa acontecer. A ação da peça se desenrola com a chegada de um elemento estranho, como um reagente químico detonador de pequenas explosões de laboratório. Entra em cena a personagem Cecília, um livro de auto-ajuda ambulante. Estes seres estão por aí, bem vestidos e penteados, querendo seu lugar ao sol. É realmente um prazer que pelo menos neste universo de ficção, ela seja mandada de volta para o nada de onde surgiu. O livro de auto-ajuda é uma ameaça muito desagradável. A neurose de Tereza é bem mais interessante. Aliás, é o que há de mais interessante no espetáculo.
O livro de auto-ajuda tem o seu oposto complementar: Hugo, o desajustado que faz do hábito da leitura uma fuga desesperada para a ficção. Não adianta ler Dante, Victor Hugo ou o que for: o pedantismo da citação usada como pílula de sabedoria revela no excesso de cultura livresca o perigo que corre uma pessoa com muitas referências de se tornar um elemento indesejável dentro de seu meio. Estas pílulas de sabedoria, jogadas por todo o texto, são como a pílula que Beatriz não toma: não fazem efeito. Beatriz lê, Vicente lê, Hugo lê. Mas lêem coisas bem diferentes. O vocabulário deles, no entanto – assim como a construção das suas frases – acaba ficando mais homogêneo do que deveria. A voz da autora transita entre as diferentes vozes, impedindo talvez que cada personagem tenha voz própria. Com exceção de Tereza, personagem que ganhou um matiz mais forte na atuação de Xuxa Lopes.
Talvez esta questão não seja tanto um problema, mas ganha destaque pelo desvio de timbre na voz em off. Em determinados momentos, este recurso é apenas usado como uma solução menor para o desenrolar da ação. Em outros, aparece como um olhar enviesado, um humor malvado, generoso e distanciado ao mesmo tempo. Ela encontraria mais fundamento nas mãos de um Cid Moreira, naquele tom do quadro do Mister M do Fantástico. Este narrador meio perverso acaba por ser o patinho feio da montagem, que talvez encontrasse sua família de cisnes num diretor com uma espirituosidade mais mesquinha.
As projeções fazem as vezes de um Ministério da auto-piedade. O conteúdo das frases tende a se dirigir apenas a um público mais jovem, com sua indignação inocente do tipo "ninguém me avisou que a vida seria assim". O legal é que o design de maço de cigarro contradiz o tom de protesto bradado aos quatro ventos. Mesmo se houvesse advertência para as coisas doloridas da vida, de nada adiantaria. Os conselhos prudentes são tão solenemente ignorados quanto as fotos sensacionalistas dos maços de cigarro.
E as histórias daquelas pessoas vão se desenrolando como numa comédia de costumes em escalas de cinza. Os conflitos do momento se resolvem de uma maneira ou de outra. Um novo episódio poderia começar a qualquer minuto. Mas a repartição é desfeita. Aquele buraco que parecia infinito chega ao fim. Bastou uma moça abrir uma janela.
É que as coisas que parecem infinitas acabam assim mesmo, sem advertência. E o que se tem a dizer depois é tão sem graça quanto o que dizem aqueles personagens em frases curtas, desnecessárias e sem brilho no fim da peça. Neste final estranho, sério candidato a corte no texto, há um rastro meio amargo de vida. Porque ela é cheia mesmo destes pobres pequenos posfácios. O problema é que na realidade não se tem o poder de simplesmente cortar estes apêndices. Afinal de contas, não vai tocar Belle & Sebastian se você se jogar pela janela.
Arquivos vazios, pôquer, café e cigarros. Uma repartição pública sem utilidade, não muito diferente do cotidiano das pessoas em geral. Problemáticos, infelizes e desesperados esperam – ou já desistiram de esperar – por qualquer coisa que possa acontecer. A ação da peça se desenrola com a chegada de um elemento estranho, como um reagente químico detonador de pequenas explosões de laboratório. Entra em cena a personagem Cecília, um livro de auto-ajuda ambulante. Estes seres estão por aí, bem vestidos e penteados, querendo seu lugar ao sol. É realmente um prazer que pelo menos neste universo de ficção, ela seja mandada de volta para o nada de onde surgiu. O livro de auto-ajuda é uma ameaça muito desagradável. A neurose de Tereza é bem mais interessante. Aliás, é o que há de mais interessante no espetáculo.
O livro de auto-ajuda tem o seu oposto complementar: Hugo, o desajustado que faz do hábito da leitura uma fuga desesperada para a ficção. Não adianta ler Dante, Victor Hugo ou o que for: o pedantismo da citação usada como pílula de sabedoria revela no excesso de cultura livresca o perigo que corre uma pessoa com muitas referências de se tornar um elemento indesejável dentro de seu meio. Estas pílulas de sabedoria, jogadas por todo o texto, são como a pílula que Beatriz não toma: não fazem efeito. Beatriz lê, Vicente lê, Hugo lê. Mas lêem coisas bem diferentes. O vocabulário deles, no entanto – assim como a construção das suas frases – acaba ficando mais homogêneo do que deveria. A voz da autora transita entre as diferentes vozes, impedindo talvez que cada personagem tenha voz própria. Com exceção de Tereza, personagem que ganhou um matiz mais forte na atuação de Xuxa Lopes.
Talvez esta questão não seja tanto um problema, mas ganha destaque pelo desvio de timbre na voz em off. Em determinados momentos, este recurso é apenas usado como uma solução menor para o desenrolar da ação. Em outros, aparece como um olhar enviesado, um humor malvado, generoso e distanciado ao mesmo tempo. Ela encontraria mais fundamento nas mãos de um Cid Moreira, naquele tom do quadro do Mister M do Fantástico. Este narrador meio perverso acaba por ser o patinho feio da montagem, que talvez encontrasse sua família de cisnes num diretor com uma espirituosidade mais mesquinha.
As projeções fazem as vezes de um Ministério da auto-piedade. O conteúdo das frases tende a se dirigir apenas a um público mais jovem, com sua indignação inocente do tipo "ninguém me avisou que a vida seria assim". O legal é que o design de maço de cigarro contradiz o tom de protesto bradado aos quatro ventos. Mesmo se houvesse advertência para as coisas doloridas da vida, de nada adiantaria. Os conselhos prudentes são tão solenemente ignorados quanto as fotos sensacionalistas dos maços de cigarro.
E as histórias daquelas pessoas vão se desenrolando como numa comédia de costumes em escalas de cinza. Os conflitos do momento se resolvem de uma maneira ou de outra. Um novo episódio poderia começar a qualquer minuto. Mas a repartição é desfeita. Aquele buraco que parecia infinito chega ao fim. Bastou uma moça abrir uma janela.
É que as coisas que parecem infinitas acabam assim mesmo, sem advertência. E o que se tem a dizer depois é tão sem graça quanto o que dizem aqueles personagens em frases curtas, desnecessárias e sem brilho no fim da peça. Neste final estranho, sério candidato a corte no texto, há um rastro meio amargo de vida. Porque ela é cheia mesmo destes pobres pequenos posfácios. O problema é que na realidade não se tem o poder de simplesmente cortar estes apêndices. Afinal de contas, não vai tocar Belle & Sebastian se você se jogar pela janela.